O dígrafo latino ch é, de facto, lido como /k/, tanto na pronúncia restaurada, actualmente em vigor em todos os nossos estabelecimentos de ensino, como na chamada pronúncia tradicional portuguesa e também na pronúncia romana ou eclesiástica, ainda utilizada pela Igreja em Portugal, nas raras ocasiões em que a língua de Cícero se faz ouvir no decorrer da liturgia. Por maioria de razões, os nomes científicos não escapam a esta regra, ou não deveriam escapar. No entanto, estes nomes, por vezes, obedecem a normas peculiares, que consuetudinariamente se vão constituindo e impondo na comunidade científica...
O caso presente talvez se entenda melhor se recorrermos à história do vocábulo cuja pronúncia gera a perplexidade do nosso consulente. O pediatra e bacteriologista austro-alemão Theodor Escherich (1857-1911) foi o primeiro cientista a estudar a flora intestinal. Entre as várias bactérias que isolou, cultivou, descreveu e baptizou, destaca-se o Bacterium coli commune («bactéria vulgar do cólon»), que o próprio Escherich apresentou à Sociedade de Morfologia e Fisiologia de Munique em 24 de Julho de 1885. Dez anos mais tarde, o botânico alemão Walter Migula (1863-1938) propôs o nome Escherichia coli para designar este microrganismo, em homenagem ao seu descobridor. Em 1919, esta denominação foi retomada num célebre trabalho conjunto do bacteriologista italiano Aldo Castellani (1877-1971) e do patologista britânico Albert John Chalmers (1870-1920). Devido ao prestígio desta obra e dos seus autores, foi o nome genérico Escherichia que vingou, acabando por gerar inúmeros engulhos a quem tentasse perceber como se deve pronunciar este termo tão estrambótico...
Como é fácil de entender, o nome Escherichia pouco ou nada tem que ver com latim. Trata se de um neologismo formado a partir do antropónimo alemão Escherich. Como é habitual em nomes científicos cunhados desta forma, a pronúncia tende a imitar a articulação da língua de origem. Daí o facto de a pronúncia recomendada em dicionários de língua inglesa ser geralmente /ɛʃəˈɹɪkjə/. Esta prolação pode parecer inconsequente, por o dígrafo ch ser pronunciado de duas formas diferentes no interior da mesma palavra, mas essa discrepância é apenas aparente. O vocábulo Escherichia, na verdade, de latim pouco tem: só o sufixo ia é latino; o resto é um antropónimo alemão mascarado de latim. Por isso mesmo, o primeiro ch, em bom rigor, nada tem que ver com o habitual dígrafo latino, fazendo parte do trígrafo alemão sch, cuja pronúncia correcta é /ʃ/.
Como tal, recomendo, no nosso burgo, a pronúncia /ɛʃɐˈɾikja/, a qual tem a tripla vantagem de se aproximar da articulação inglesa e de respeitar a prolação do antropónimo alemão e do sufixo latino. A variante /eʃɐˈɾikjɐ/, mais “aportuguesada”, também me parece aceitável. Já a prolação /eʃɐˈɾiʃjɐ/ (ou a sua variante /iʃɐˈɾiʃjɐ/) não merece a minha aprovação, embora seja frequente nos nossos meios académicos, pelo que pode vir a adquirir — se é que não adquiriu já — o estatuto de facto consumado...
A pronúncia dos nomes científicos é um assunto complicado, delicado e sem “solução única” à vista. Conforme aponta o nosso consulente, com toda a pertinência, a pronúncia restaurada nem sempre é de fácil aplicação, e a pronúncia tradicional portuguesa também apresenta desvantagens consideráveis. A estas dificuldades acrescento uma terceira: a da colocação do acento tónico. É frequente os nomes científicos serem constituídos por neologismos que não se encontram em nenhum dicionário de latim. Como os mesmos são desprovidos de sinais diacríticos, torna-se um quebra-cabeças descobrir se o acento tónico deve ser colocado na penúltima ou na antepenúltima sílaba. Por vezes, é possível recorrer a um dicionário de grego, mas a pesquisa nem sempre se revela fácil ou mesmo frutífera. Por exemplo, o nome genérico da chita (Acinonyx) é constituído por três elementos gregos, e ainda por cima um deles está abreviado. É preciso uma certa ginástica mental para conseguir “traduzir” este termo e entender o motivo da sua formação...
Normalmente utilizo a pronúncia restaurada para ler os nomes científicos, por me parecer a mais clara, a mais perceptível e a menos sujeita a arbitrariedades. Por exemplo, pronuncio o nome genérico da chita como /akiˈnɔniks/. No caso de certos nomes derivados de antropónimos (como Escherichia) ou de topónimos, posso desviar-me pontualmente dessa norma, se a pronúncia do antropónimo ou topónimo assim o recomendar, e se desse desvio resultar uma pronúncia mais reconhecível. Por exemplo, se algum cientista descobrisse em Xabregas uma nova espécie de gaivota e resolvesse chamar-lhe Larus xabregensis, a pronúncia que eu recomendaria para o epíteto específico seria /ʃabɾɛˈgensis/, embora admitisse também a forma /ksabɾɛˈgensis/, inteiramente conforme à pronúncia restaurada. Qualquer outra variante demasiado vernácula (/ʃɐbɾɛˈʒẽsiʃ/, por exemplo) seria, quanto a mim, de evitar.
Quanto ao nome dos táxones, entendo não haver qualquer motivo para os grafar com inicial maiúscula. Por isso mesmo, parece me preferível escrever espécie, género, família, etc.