Os nomes científicos atribuídos às espécies e outros grupos taxonómicos do reino animal são regulamentados pelo Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, mais conhecido pela sigla ICZN (da designação inglesa International Code of Zoological Nomenclature). O ICZN, publicado pela primeira vez em 1961, é da autoria da International Commission on Zoological Nomenclature (Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica) e foi adoptado igualmente pela International Union of Biological Sciences (União Internacional das Ciências Biológicas). À edição original seguiram-se mais três, em 1964, 1985 e 2000, sendo esta última a que está atualmente em vigor.
O ICZN, constituído por 90 artigos agrupados em 18 capítulos, para além de um preâmbulo e de um glossário, estabelece não só os critérios que devem nortear a elaboração e atribuição dos chamados nomes científicos, como também os requisitos a que deve obedecer a publicação dos mesmos. Cada artigo é constituído por uma ou mais cláusulas de caráter obrigatório (apresentadas sob a forma de alíneas), acompanhadas, nalguns casos, de recomendações e/ou exemplos ilustrativos.
Algumas destas cláusulas interessam-nos particularmente no caso em questão, pelo que deixo aqui a respectiva transcrição no idioma luso. Por não ter encontrado outra, ofereço aqui uma versão da minha lavra:
«11.2. Obrigatoriedade do alfabeto latino. Um nome científico, quando é publicado pela primeira vez, tem de ser escrito apenas com as 26 letras do alfabeto latino (incluindo j, k, w, y); se o nome, quando é publicado pela primeira vez, contiver diacríticos e outros sinais, apóstrofos, ligaduras, um hífen ou um numeral num nome composto espécie-grupo, não será considerado indisponível só por este facto […].
11.3. Derivação. Desde que cumpra os requisitos referidos neste capítulo, um nome pode ser constituído por uma palavra existente em latim, grego ou qualquer outra língua (mesmo desprovida de alfabeto), ou derivada dessas línguas, ou pode ser formado a partir dessa palavra. Pode consistir numa combinação arbitrária de letras, desde que a mesma possa ser utilizada como palavra.
Exemplos. Toxostoma e brachyrhynchos, do grego; opossum, do algonquino; Abudefduf, do árabe; korsac, do russo; nakpo, do tibetano; canguru, do kokoimudji, língua aborígene da Austrália; Gythemon, uma combinação arbitrária de letras. A combinação arbitrária de letras cbafdg não pode ser utilizada como palavra, pelo que não constitui um nome.
Recomendação 11A. Utilização de nomes em vernáculo. Uma palavra em vernáculo não deve ser utilizada como nome científico sem prévia alteração. É preferível latinizar de forma adequada as palavras vernáculas utilizadas na formação de nomes.
13.1. Requisitos. Para estar disponível, qualquer nome publicado após 1930, além de satisfazer as cláusulas do Artigo 11, tem de:
13.1.1. vir acompanhado de uma descrição ou definição que exponha as características que permitem diferenciar o táxon, ou
13.1.2. vir acompanhado de uma referência bibliográfica a essa exposição, mesmo que a obra onde figura a exposição tenha sido publicada antes de 1758, ou não seja consistentemente binominal ou tenha sido desautorizada pela Comissão […], ou
13.1.3. ser proposto expressamente como nome de substituição (nomen novum) para um nome já disponível […]
Recomendação 13A. Intenção de diferenciar. Ao descrever um novo táxon nominal, o autor deve enunciar de forma clara a sua intenção de o diferenciar, recorrendo para o efeito a uma diagnose, ou seja, a um resumo das características que diferenciam o novo táxon nominal de outros táxones aparentados ou semelhantes.
Recomendação 13B. Língua. As diagnoses de novos táxones devem ser publicadas em línguas de larga utilização em zoologia. As diagnoses devem escrever-se também nas línguas utilizadas nas regiões relevantes para os respectivos táxones.»
A citação é longa, mas não deixa de ser interessante, pois esclarece alguns conceitos que por vezes são referidos de forma incompleta ou mesmo err{#ó|ô}nea em livros de divulgação científica. Em primeiro lugar, ao contrário do que é geralmente propalado, não é obrigatório que os nomes científicos sejam em latim. Podem provir de qualquer língua ou ser mesmo constituídos por palavras inventadas. E embora exista a recomendação de latinizar tais palavras, a latinização não é obrigatória. A única obrigatoriedade, como vimos, refere-se à utilização do alfabeto latino. Também não é obrigatório publicar uma descrição ou definição do novo táxon em latim. Aliás, é questionável se o latim continua a poder ser considerado uma língua «de larga utilização em zoologia»…
No entanto, apesar de não ser obrigatório, a verdade é que, por uma questão de tradição, a maior parte dos nomes científicos são constituídos por vocábulos latinos e gregos. O grego, aliás, mais do que o latim, é a fonte principal a que recorrem os taxonomistas, por ser uma língua extremamente rica, com uma capacidade praticamente inesgotável de formar palavras compostas, normalmente dotadas de grande densidade semântica. Por exemplo, Hylobates, o nome genérico do gibão, significa «o que percorre a floresta». Este vocábulo, aliás, já existia em grego clássico e era um dos epítetos do deus Pã.
Em relação ao ponto central da questão levantada pela nossa consulente, o ICZN diz apenas que os novos táxones devem vir acompanhados de «uma descrição ou definição» que exponha as características diferenciadoras. Ou seja, não existe qualquer obrigatoriedade de indicar a origem ou etimologia dos vocábulos que os constituem. Apesar disso, há autores que explanam essa origem nos trabalhos em que publicam os novos nomes. No entanto, que eu saiba, não existe bibliografia específica sobre essa matéria. Quem quiser descortinar a origem desses vocábulos vê-se obrigado a consultar os referidos trabalhos, que se encontram dispersos por livros, revistas, atas de congressos e outras fontes, muitas vezes de difícil acesso para os leigos.
Nos casos em que se omite a origem dos vocábulos, ou ela é facilmente dedutível da descrição do animal em questão, ou então é necessário ter conhecimentos elementares de latim e grego para poder lá chegar. Nalguns casos, só com alguma ginástica mental é que se consegue resolver o mistério. É o caso de Acinonyx, o nome genérico da chita. Para conseguir deslindar o seu significado, é necessário decompor o vocábulo nos seus vários elementos: a («sem») + cin (latinização de kin, que por sua vez é abreviatura de kínema, «movimento») + onyx («unha» ou «garra»). Resumindo, acinonyx literalmente significa «garra sem movimento», ou seja «garra imóvel», nome que advém do facto de a chita ser o único felino desprovido de garras retráteis.
As cláusulas do ICZN anteriormente referidas permitem concluir que aos zoólogos é dada grande “liberdade de expressão” no que concerne à escolha dos nomes científicos. Praticamente não há limites à sua criatividade, imaginação ou mesmo fantasia, e a verdade é que alguns dos nomes consagrados pouco ou nada têm de “científico”. Por exemplo, o nome genérico do chimpanzé e do bonobo (Pan) provém da mitologia grega: Pã era o deus dos campos, dos rebanhos e dos pastores, representado com o corpo parcialmente em forma de bode…
Um dos nomes genéricos de origem mais bizarra é talvez o do orangotango (Pongo). Este vocábulo é ilustrativo da falta de “critério científico” que por vezes preside à escolha de um novo nome científico. Por isso mesmo, vou apresentar a sua história com algum pormenor e desta forma concluo a minha resposta.
Em 1625, Samuel Purchas (1575?-1626), um escritor de viagens inglês, publicou em quatro grossos tomos, num total de mais de 2000 páginas, a famosa obra Hakluytus posthumus, or, Purchas his Pilgrimes. Contayning a history of the world, in sea voyages, & lande-trauells, by Englishmen and others («Hakluytus póstumo ou as peregrinações de Purchas, onde consta a história do mundo em viagens marítimas e terrestres, narradas por ingleses e outros»). O terceiro capítulo do segundo tomo, com início na página 970, intitula-se The strange aduentures of ANDREW BATTELL of Leigh in Essex, sent by the Portugals prisoner to Angola, who liued there, and in the adioyning Regions, neere eighteene yeeres («As estranhas aventuras de Andrew Battell, oriundo de Leigh, no condado de Essex, enviado pelos portugueses como prisioneiro para Angola, vivendo aí, e nas regiões circundantes, perto de dezoito anos»). Ora na página 981 depara-se-nos um curioso relato de Andrew Battell, que deixo aqui em tradução da minha autoria mantendo os itálicos do original:
«Esta província de Mayombe está toda coberta de bosques e mato; tão espessos, que uma pessoa pode viajar vinte dias à sombra sem ver o sol nem sentir o seu calor. […] Os bosques estão tão pejados de babuínos, macacos, monos e papagaios, que ninguém se atreve a viajar neles sozinho. Aqui também há duas espécies de monstros, que são comuns nestes bosques e muito perigosos.»
A narração prossegue na página 982, repleta de pormenores assombrantes:
«O maior deles chama-se Pongo no linguajar desta gente, e ao mais pequeno chamam Engeco. Este Pongo é tal e qual um homem, mas em estatura é mais um gigante que um homem, pois é muito alto e tem o rosto humano, olhos cavos, com pêlos muito compridos nas sobrancelhas. O rosto e as orelhas estão desprovidos de pêlos, tal como as mãos. Tem o corpo cheio de pelagem, embora não muito espessa, e é de uma cor cinzento-acastanhada. Não difere de um homem a não ser nas pernas, por não terem panturrilha. Caminha sempre sobre as pernas, com as mãos postas na nuca, quando se desloca em terra. Dormem nas árvores e constroem abrigos para a chuva. Alimentam-se de fruta que acham nos bosques e de frutos secos, pois nunca comem carne. Carecem de fala e não possuem mais entendimento que uma alimária. As pessoas desta terra, quando labutam nos bosques, fazem fogueiras nos sítios onde pernoitam; e de manhã, depois de partirem, chegam os Pongos e sentam-se à roda da fogueira, até esta se extinguir, pois não têm entendimento que lhe permita juntar lenha. Andam em magotes e matam muitos Negros que labutam nos bosques. Atacam amiúde os elefantes, quando estes vêm alimentar-se ao sítio onde eles se encontram, e batem-lhes de tal guisa, com os punhos cerrados e pedaços de madeira, que fogem deles aos urros. Os Pongos nunca se deixam apanhar vivos, por serem tão fortes, que dez homens não conseguem agarrar um só deles; mas esta gente fila muitos dos mais jovens com setas apeçonhadas. As crias do Pongo andam penduradas na barriga da mãe com as mãos cravadas à volta dela: de tal feição que, quando a gente da terra mata uma fêmea, tiram-lhe a cria, que continua agarrada ao corpo da mãe. Quando morrem entre eles, tapam o morto com grandes pilhas de galhos e lenha, encontradiços na floresta.»
Hoje ninguém sabe ao certo o que viu Andrew Battell por aquelas paragens. Orangotangos seguramente não eram, que não os há em África. Terão sido gorilas, pois habitam nas vizinhanças de Angola? É difícil ajuizar com os dados disponíveis, até porque poderá haver alguma carga de ficção misturada com a realidade. Seja como for, em 1799, quando o naturalista francês Bernard-Germain de Lacépède (1756-1825), na sua obra Mémoire sur une nouvelle table méthodique des animaux à mamelles («Memória sobre uma nova tabela metódica dos mamíferos»), propôs um novo nome científico para o orangotango, até então conhecido por Simia pygmaeus (Hoppius, 1763), Simia satyrus (Linnaeus, 1766) e Ourangus outangus (Zimmerman, 1777), não recorreu ao latim, nem ao grego, nem ao malaio. Preferiu lançar mão do relato de Battell, que, com pouco mais de século e meio de existência, ainda devia ser de leitura frequente na época, e cunhou o nome Pongo borneo. O epíteto específico não vingou, mas o nome genérico manteve-se até aos nossos dias e até deu origem ao nome da família dos pongídeos. O atual nome do orangotango é Pongo pygmaeus (embora haja autores que defendem a existência de duas espécies, sendo a outra conhecida por Pongo abelii). Trata-se de um nome com certa carga histórica, não só devido à proveniência do vocábulo Pongo, mas também pela insistência no epíteto pygmaeus, um resquício da ignorância e dos preconceitos raciais vigentes no século XVIII, quando se equiparavam os pigmeus aos símios…
N. E. (14/1/2017) – Agradece-se ao consulente Bruno Fontane (Coimbra) a seguinte achega: «[...] o nome científico de uma espécie é constituído por duas palavras: nome genérico e restritivo específico. O primeiro é sempre escrito com inicial maiúscula e o segundo sempre com minúscula. Quando em manuscrito, o nome científico é sublinhado, quando em dactiloscrito, grafa-se em itálico. Assim, Phaseolus vulgaris e não "phaseolus vulgaris"; Brassica oleracea e não "brassica oleracea".»