A grafia trans-histórico («que está além da história») está correta, pelo menos, conforme a norma ortográfica em vigor no Brasil e em Portugal. Contudo, a escrita de derivados que incluam o prefixo trans- levanta questões antigas ainda por resolver que conduzem a aceitar transistórico como forma também possível e correta.
Na Base XVI, 1 a) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, dedicada à hifenização de prefixos, o prefixo trans- não se encontra entre os elementos prefixais enumerados, mas acontece que também não figura nas exceções aí definidas, o que leva a supor que lhe são aplicáveis os critérios gerais. Sendo assim, hifeniza-se trans- antes de palavra começada por h, à semelhança dos prefixos terminados por vogal, b, m, n ou r: trans-histórico, com hífen, tal como se escreve extra-humano, sub-hepático, circum-hospitalar, pan-helenismo, super-homem. Todos estes exemplos são mencionados pela referida base, que, no entanto, não apresenta nem faz acompanhar de exemplo nenhum prefixo terminado em -s, como cis- (cisalpino) ou trans- (transalpino).
Tendo trans- hífen antes de h, convém também indagar se a grafia deste prefixo é congruente com os demais preceitos da Base XVI. Por exemplo, qual o critério a seguir quando o prefixo, que termina em -s, se associa a palavra começada pela mesma letra? A Base XVI é, como se disse, omissa em relação a prefixos terminados em -s, mas, a respeito de prefixos rematados por vogal ou r, determina o emprego do hífen1 quando se produz o encontro da mesma letra: micro-ondas, hiper-requintado. Nesta perspetiva, espera-se, por exemplo, uma grafia como trans-sexual, a qual o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (VOC), do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, efetivamente regista. Contudo, esta grafia, que leva hífen em resultado de a consoante final do prefixo e inicial da palavra prefixada serem a mesma, não reúne consenso: com efeito, além de, na 2.ª edição do Vocabulário Ortográfico do Português, associado ao VOC como vocabulário ortográfico de Portugal, se registar transexual a par de trans-sexual, os outros vocabulários ortográficos atualizados2 disponíveis – entre eles o da Academia Brasileira de Letras –, só consignam a grafia sem hífen e com s simples. É, portanto, legítimo concluir que a configuração do prefixo trans- não encontra enquadramento consistente no AO 90.
Acrescente-se que há muito, frequentemente por motivos históricos, se registam as formas transumanar e transumanado, que pressupõem transumano, de trans (prefixo)+humano (adjetivo). Seria talvez de esperar que, no contexto da Base XVI, atualmente se grafasse "trans-humano", mas não é assim que acontece, como bem confirma quem consultar os dicionários e vocabulários atualizados de harmonia com o AO 90. É, pois, de supor que estas palavras permanceram intocadas por terem tradição lexicográfica, um pouco como o que ocorre com o prefixos átono pre- de preencher ou prever, apesar de coexistir com a forma tónica pré-, sempre hifenizada (cf. pré-escolar e pré-natal). O caso de transumano e derivados alinha, portanto, com o das grafias dos derivados prefixais de humano com des- e in-: desumano e inumano. Não admira, portanto, que transistórico3 possa constituir variante correta.
1 Em comparação com os preceitos enunciados na Base XVI do AO 90, os critérios de aplicação do AO 90 à 1.ª edição do Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua Portuguesa) têm uma formulação mais genérica, abrangendo qualquer encontro da mesma letra: «[o hífen é usado quando] a letra com que terminam é a mesma com que se inicia a palavra a que se juntam». Acrescente-se que Dicionário Houaiss na sua edição de 2009, portanto, publicada com a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, observa que «este pref., [é] extremamente prolífico, só se liga com hífen à palavra iniciada por h». Convém recordar, porém, que no mesmo dicionário, na sua 1.ª edição brasileira, saída ainda quando estava em vigor o Formulário Ortográfico de 1943, se lê que trans- é um prefixo «extremamente prolífico, observando [o VOLP da ABL] que se liga sempre sem hífen à palavra derivadora».
2 Além do VOC e VOP, foram consultados o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, o vocabulário ortográfico da Infopédia e o Vocabulário Ortográfico da Academia das CIências de Lisboa.
3 Assinale-se, porém, que, anos antes da aplicação do AO 90, já José Pedro Machado (2014-2005), no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa, registava duas variantes gráficas: trans-histórico e transistórico.