O texto correto da divisa da rainha D. Leonor é Pretiosior est cunctis opibus, que quer dizer literalmente «É mais preciosa do que todas as riquezas». Em textos medievais, porém, em vez de pretiosior, poderá encontrar-se a grafia preciosior, que reflete a pronúncia da época.
O adjetivo pretiosior é o comparativo tanto da forma feminina pretiosa («preciosa») como da masculina pretiosus («precioso»), pelo que, teoricamente, seria igualmente aceitável a tradução «é mais precioso». No entanto, como se trata de uma frase bíblica referente à sabedoria, deverá traduzir-se pela forma feminina, como se disséssemos: «(A sabedoria) é mais preciosa do que todas as riquezas».
A frase provém do chamado livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Salomão. O versículo completo (3:15), tal como se encontra na Vulgata, reza assim: Pretiosior est cunctis opibus, et omnia quae desiderantur huic non valent comparari («É mais preciosa do que todas as riquezas, e nada do que desejamos se lhe pode comparar»).
Devido ao prestígio da Vulgata durante séculos a fio, a referida frase foi inúmeras vezes citada, por vezes com certas adaptações, em todo o género de obras. Por exemplo, no célebre tratado de alquimia Aurora consurgens, encontramos o seguinte dizer: Et fructus illius est pretiosior cunctis opibus huius mundi1 («E o seu fruto é mais precioso do que todas as riquezas deste mundo»). Já numa bula do papa Inocêncio IV (c. 1195-1254), emitida em 1250, se fala de flos pretiosior cunctis opibus2 («uma flor mais preciosa do que todas as riquezas»).
Voltando ao referido trecho bíblico, verificamos que, na maior parte das traduções modernas, em vez de «todas as riquezas», o que lemos é «pérolas». Por exemplo, em A Bíblia Sagrada, publicada em 1978 pelas Edições Paulinas, encontramos a seguinte versão:
«Ela é mais preciosa do que as pérolas,
e todos os tesouros não se lhe comparam» (p. 758).
Na chamada Bíblia dos Capuchinhos, dada à estampa pela Difusora Bíblica em 2003, este versículo soa assim em português:
«Ela é mais preciosa do que as pérolas,
e nada do que possas desejar lhe será igual» (p. 1000).
Quando consultamos o texto hebraico, verificamos que o termo correspondente é פנינים (penînîm). Em hebraico moderno, de facto, פנינים quer dizer «pérolas», e já na Idade Média se utilizava o termo com este significado, como se comprova pelo título da tradução hebraica da célebre obra Seleção de pérolas (מבחר הפנינים, mivḥar ha-penînîm), tradicionalmente atribuída a Salomão Ibn Gabirol (c. 1021-c. 1058), poeta e filósofo judeu andaluz, e cujo original, escrito em árabe, se perdeu. O termo פנינים, porém, aparece noutros passos da Bíblia, e num deles (Lamentações 4:7) está associado à cor vermelha, pelo que aparentemente teria um significado mais abrangente em hebraico clássico, o qual não será fácil de precisar. Talvez por isso a Vulgata tenha arrumado a questão com a tradução genérica cunctis opibus («todas as riquezas») no referido trecho do livro dos Provérbios. Já a chamada Versão dos Setenta ou Septuaginta traduz por λίθων πολυτελῶν («pedras preciosas»). Na tradução do Antigo Testamento em esperanto, vertido diretamente do texto original por L. L. Zamenhof (1859-1917), que era judeu e conhecia bem o hebraico, פנינים é traduzido por juveloj («joias»), enquanto na célebre King James Version, o termo é traduzido por rubies («rubis»), talvez devido à alusão à cor vermelha que se encontra no trecho do Livro das Lamentações já referido...
1 C. G. Jungs. Obra completa. 14/3. Mysterium coniunctionis. Epílogo. Aurora consurgens. Trad. Dora Mariana Ferreira da Silva. Petrópolis: Editora Vozes. p. 47.
2 Historical life of Joanna of Sicily, Queen of Naples and Countess of Provence. Vol. II. London: Baldwin, Cradock, and Joy 1824. p. 289.