Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«A médico, confessor e letrado, nunca enganes»;

«A médico, confessor e letrado, nunca agradeças».

No primeiro caso, estaremos na presença de um complemento directo e, no segundo, de um complemento indirecto, é verdade?

Ou seja, entre enganá-LOS e agradecer-LHES há uma diferença que importa: é que se agradece sempre qualquer coisa (que será um complemento directo, ainda que implicitamente). Em "agradecê-LO", aí, sim, poderíamos observar um C. D.

Poderei fazer este raciocínio e explicá-lo desta forma?

Grata.

Resposta:

O seu raciocínio está correto, e as suas explicações parecem-me lógicas.

Na primeira frase, a preposição a é dispensável, pois na verdade ela não é regida pelo verbo enganar; ao passo que, na segunda frase, a presença da preposição a é obrigatória, pois ela é exigida pelo verbo agradecer.

A diferença entre «enganá-los» e «agradecer-lhes» é precisamente essa: enganar é seguido do pronome os, que representa o COD (complemento de objeto directo, não introduzido por preposição); agradecer é seguido do pronome lhes, que representa o COI (complemento de objeto indireto, introduzido por a). Contudo, no caso deste último verbo, é possível agradecermos alguma coisa (COD) a alguém (COI). Deste modo, agradecer tanto pode ser seguido do pronome o/a(s) como de lhe(s), como de ambos, numa forma contraída (ex.: «Encontrei ontem o colega que me enviou os apontamentos e agradeci-lhos.»).

Pergunta:

Haverá alguma forma astuta de traduzir catch-the-eye? O contexto é o seguinte: inicia-se um debate numa assembleia e o presidente dá a palavra a quem conseguir captar a sua atenção, o seu olhar – «to whomever manages to catch his/her eye».

Obrigada.

Resposta:

Parece-me perfeitamente adequada a tradução que a consulente apresenta: «a quem conseguir captar a sua atenção» ou «a quem conseguir captar o seu olhar». Alternativamente, poderá usar o verbo atrair, mas considero captar mais adequado ao contexto.

Uma observação: não me parece que a expressão catch the eye deva ser grafada com hífenes, até porque é muito frequente estar um nome ou um pronome entre catch e eye, implicando a omissão do artigo definido the. Aliás, os dicionários tendem a apresentar a expressão como «catch someone's eye».

Pergunta:

Está correto dizer/escrever:

1. «Ele disse que ia vir à nossa casa.»

Está correto: «ia vir»?

Locução verbal com verbo ir e vir?

Não há contradição de "sentido" entre ir e vir usados juntos, simultaneamente, na mesma locução verbal? («ia vir» = viria?)

E também:

2. «Ele disse que vai ir ao churrasco no domingo.»

«vai ir» = irá?

Muito obrigado.

Resposta:

No que respeita à primeira questão, a perífrase verbal ir + vir é admissível em português, ainda que pareça haver uma contradição entre os sentidos expressos por esses dois verbos.

Com efeito, o verbo ir, enquanto auxiliar temporal, serve para transmitir a ideia de que existe a intenção de realizar a acção no futuro (ou no condicional, no caso do discurso indirecto). Costuma substituir, no discurso informal, a conjugação do verbo principal no futuro do indicativo, quando está no presente do indicativo; e no condicional, quando está no pretérito imperfeito do indicativo. Assim:

«Ele disse que vai vir.» = «Ele disse que virá

«Ele disse que ia vir.» = «Ele disse que viria

Quanto à segunda questão, julgo que há uma divergência entre Portugueses e Brasileiros no que toca ao uso da perífrase verbal quando há coincidência entre esse verbo auxiliar e o principal (ir + ir). No Brasil, as construções desse tipo serão admissíveis (ex.: «Ele disse que vai ir»), pelo menos no discurso oral/informal, ao passo que em Portugal elas são evitadas, quando o verbo principal está no infinitivo, embora sejam usadas se este estiver no gerúndio (ex.: «O trabalho vai indo bem»).

Pergunta:

Num determinado contrato de mandato de gestão consta a seguinte frase:

«A sociedade XXX será responsável por qualquer prejuízo decorrente do exercício negligente deste mandato, designadamente decorrente do incumprimento pela sociedade XXX de qualquer legislação ou regulamentação aplicável àquela, ou decorrente da realização de menos-valias relativamente ao valor dos activos financeiros à data em que foram confiados à sociedade XXX para serem geridos no âmbito deste contrato, e pelas obrigações fiscais resultantes dos rendimentos obtidos em consequência do referido mandato.»

Solicitamos que, relativamente à frase acima, se dignem esclarecer se o conceito de «exercício negligente» aí expresso abrange, ou não, a realização das aí referidas «menos-valias».

Permitimo-nos uma chamada de atenção para o facto de a frase «(…) designadamente decorrente do incumprimento pela sociedade XXX de qualquer legislação ou regulamentação aplicável àquela (…)» se encontrar entre vírgulas.

Obrigados.

Resposta:

Por um lado, podemos admitir que ambas as vírgulas destacadas pela consulente concorrem para o mesmo objectivo, que é isolar o elemento explicativo. Assim, uma interpretação possível é a seguinte:

«A sociedade XXX será responsável por qualquer prejuízo decorrente do exercício negligente deste mandato [e entre as vírgulas explica-se em que pode consistir esse exercício negligente] ou decorrente da realização de menos-valias [...]»

Neste caso, a «realização de menos-valias» não estará incluída na explicação do que poderá ser o «exercício negligente» do mandato.

Todavia, podemos também entender que a segunda vírgula foi usada apenas por anteceder a oração coordenada iniciada pela conjunção ou. Nesse caso, a explanação do que se entende por «exercício negligente» abrangerá também essa parte do texto, até à vírgula que se segue a «contrato» (sendo esta terceira vírgula aquela que fecha a explicação em causa):

«A sociedade XXX será responsável por qualquer prejuízo decorrente do exercício negligente deste mandato, designadamente decorrente do incumprimento pela sociedade XXX de qualquer legislação ou regulamentação aplicável àquela, ou decorrente da realização de menos-valias relativamente ao valor dos activos financeiros à data em que foram confiados à sociedade XXX para serem geridos no âmbito deste contrato, e pelas obrigações fiscais resultantes dos rendimentos obtidos em consequência do referido mandato.»

Pergunta:

Na língua espanhola, por exemplo, existe a distinção entre os termos diseño (que se refere ao design ou projecto) e dibujo (que se refere ao desenho). Também em português existiram essas nuances de significado, com os termos debuxo e desenho. Como já li neste site, o primeiro significaria «esboço» ou «desenho», e o último tinha o sentido de «projecto».

Actualmente está incorporada a palavra design, que comporta o sentido de «desenho de projecto», «desígnio». A minha dúvida é: tenho alguma hipótese de não utilizar este estrangeirismo num relatório de 2008?

Resposta:

Qualquer relatório é dirigido a um público específico, pelo que eu a aconselharia, antes de mais, a considerar se as suas opções de vocabulário estão de acordo com os conhecimentos e as preferências desse mesmo público.

Se quiser evitar o estrangeirismo design, é claro que pode fazê-lo, mas não deverá correr o risco desnecessário de o termo empregado em vez desse não ser entendido ou aprovado pelos leitores do relatório.

Tendo em conta, por exemplo, a definição de design que nos é dada pelo Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora — «método que serve de base à criação de objectos e mensagens tendo em conta aspectos técnicos, comerciais e estéticos» —, será desenho o termo adequado para traduzir o conceito em português?

Parece-me que este é um dos muitos estrangeirismos que, apesar de terem tradução em português, foram incorporados na nossa língua por representarem uma ideia ou conjunto de ideias que a palavra correspondente não continha.