Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Num anúncio publicitário, pode ler-se a seguinte frase: «Toda a criança tem o direito a ser criança

Parecem-me melhor as seguintes formulações: «toda a criança tem direito a ser criança» ou «toda a criança tem o direito de ser criança».

Tenho razão, ou a frase publicitária está correcta?

Resposta:

Tendo em conta as ocorrências registadas no Corpus do Português, ambas as preposições são possíveis. 

Pode dizer-se que, de acordo com o uso, há uma certa tendência para empregar de quando se segue um verbo (ter o direito de fazer algo) e a quando se segue outro nome (ter direito a alguma coisa) — excepto quando se fala do direito de alguém, ou seja, que alguém possui. Portanto, talvez fosse mais  natural dizer, em português europeu, «Toda a criança tem o direito de ser criança». 

Da mesma forma, julgo que os falantes em geral tendem a usar artigo definido (o) antes de «direito de» e a omiti-lo quando empregam a expressão «direito a». Portanto, «tem direito a...» ou «tem o direito de...». 

Para concluir, eu diria que a consulente tem razão ao preferir as frases alternativas que propõe. No entanto, não se pode afirmar que a frase em questão está incorrecta. Trata-se apenas de uma construção menos usual.

Pergunta:

Foi-me enviado, como material de referência para uma tradução, um documento onde surge a palavra "assemblagem". Não conhecendo a palavra, consultei dicionários, mas não a encontrei. Em contrapartida, surge em muitos textos técnicos na Internet. No documento em questão, é referido que «A assemblagem é o processo de reunião num só ficheiro de todas as imagens...». Será que poderei utilizar "assemblagem" sem incorrer em erro?

Grata, desde já, pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

O pretenso substantivo “assemblagem” derivaria do suposto verbo “assemblar”, constituindo estes termos uma tradução literal do inglês: (to) assemble/assemblage — por sua vez importados da língua francesa.

Apenas existe em português o nome assembleia, cujo significado não se aplica ao contexto referido pela consulente. De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, pode usar-se o galicismo assemblage, mas, pessoalmente, optaria por uma palavra inequivocamente portuguesa, como reunião, junção, agrupamento, etc.

No entanto, é possível que o documento a que se refere se destine a um grupo profissional que emprega regularmente o termo “assemblagem” no seu jargão e que, por isso, o prefere relativamente a qualquer outro.

 

N. E. (9/4/2015) – Um consulente de Amarante (Portugal), Ismael Guimarães, informa-nos de que assemblagem é usado com o significado especializado de «ato de montar os componentes de um computador».

Pergunta:

Aqui nos EUA, usamos a palavra ticket para significar o voto com o presidente e o vice-presidente juntos. Há equivalente em português? Encontrei a palavra chapa num dicionário de português brasileiro, mas é a mesma coisa em Portugal?

Resposta:

Na minha opinião, o equivalente a ticket, nesse sentido, em português europeu, é o termo lista, pois também designa o conjunto de candidatos a determinadas funções apoiados pelo mesmo partido.

N. E. (6/1/2017) – Note-se que o anglicismo ticket, geralmente traduzido por bilhete ou senha (em Portugal, no caso de «senha de restaurante»), tem forma aportuguesada no Brasil – tíquete –, conforme se consigna no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras e no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, publicado em 2004 (ver também Dicionário Online de Português). Refira-se que este aportuguesamento não é desconhecido em Portugal, como evidencia o seu registo no Vocabulário Ortográfico do Português (ILTEC).

Pergunta:

A tradução correcta da frase «chip card accepted» é «cartão chip aceite»? Vi numa tradução aceite pelo cliente a forma «cartão de fatia aceitou», uma frase que por sinal me custa muito aceitar, por não me parecer fazer muito sentido. Estarei errada?

Obrigada.

Resposta:

Apesar da ausência de um contexto que permita confirmar a legitimidade da tradução, parece-me que «cartão chip aceite» é uma versão válida, em português, da frase original (com o estrangeirismo em itálico).

Relativamente a «cartão de fatia aceitou», parece uma brincadeira. Trata-se, provavelmente, de uma tradução automática efectuada por um programa de computador, que falhou redondamente na abordagem sintáctico-semântica da sequência.

Pergunta:

Na tertúlia política de que participo, houve quem achasse correcta a expressão «primeira prioridade», pretendendo-se, com tal, designar uma primeira opção entre várias.

Argumentei que, ou se utilizava apenas prioridade («… é prioridade do governo isto ou aquilo…») ou se substituiria por expressões como: «… é primeira opção…», «é primeira escolha…», etc., porquanto penso que prioridade significa, por si só, «primeiro lugar», sendo absurdo dizer ou escrever «segunda prioridade».

Terei razão?

Antecipadamente grato pela atenção que me dispensarem.

 

Resposta:

Concordo com o consulente.

A prioridade implica, de facto, estar em primeiro lugar. Por conseguinte, parece-me redundante falar de «primeira prioridade» e absurdo dizer «segunda prioridade».

Isto não significa, porém, que não possam existir várias prioridades, pois, em vez de haver uma só pessoa, coisa ou ideia com prioridade sobre as outras, podemos ter um conjunto de pessoas (grávidas e idosos, por exemplo), de coisas ou ideias (saúde, educação e obras públicas, por hipótese). Mas, nesses casos, continua a não fazer sentido falar de primeira e segunda prioridade: se as grávidas passam à frente dos idosos, então são elas a prioridade. Se a saúde é mais importante para o Governo, então é essa a prioridade.

Quando se pretende salientar a mais importante das prioridades, recomendo que se usem, precisamente, as expressões avançadas pelo consulente: «primeira opção», «primeira escolha», etc.