Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

1. A palavra submunicipal pode ser usada na língua portuguesa ?

2. Em caso afirmativo, e em termos ortográficos, o vocábulo deve ser usado com ou sem hífen?

Resposta:

1. O adjetivo submunicipal  é uma palavra não só possível e legítima mas também usada, como ilustra o seguinte exemplo retirado de um documento jurídico-administrativo:

«3 - Todas as iniciativas locais de prevenção, pré-supressão e recuperação de áreas ardidas ao nível submunicipal devem ser articuladas e enquadradas pelos PMDFCI» (Lei 76/201Diário da República n.º 158/2017, Série I de 2017-08-17). 

2. A palavra não tem hífen, aglutinando-se o prefixo sub- ao segundo constituinte: submunicipal., tal como acontece com subárea, subdesenvolvido ou subsolo. Com sub-,  só ocorre a hifenização quando o segundo constituinte da palavra começa por b ou h: sub-base, sub-bloco, sub-bosquesub-hemisférico, sub-humano (cf. Base XVI do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990).

Pergunta:

Nasci em 1950 e, na então chamada Instrução Primária, aprendi que as palavras pai e mãe se escreviam com letra minúscula, quando nos referíamos a um dos progenitores de uma determinada pessoa. Mas que se escreviam com letra maiúscula quando nos referíamos ao nosso próprio pai ou à nossa própria mãe. Esta regra ainda persiste, ou foi modificada por alguma alteração posterior a 1950?

Resposta:

Não se trata de uma regra, mas, tão-só, de um uso facultativo que marca respeito e que se pode justificar pedagogicamente. Note-se, de qualquer modo, que este uso, além de não encontrar registo na atual norma ortográfica, também não é referido na norma anterior, a do Acordo Ortográfico de 1945.

Pergunta:

Poderiam, por favor, esclarecer-me quanto ao significado – e correção – da expressão "conversa de pé de orelha"?

Grato.

Resposta:

A expressão generalizada e consagrada é de facto «de pé de orelha», que faz parte de «conversa de pé de orelha», que significa «conversa confidencial»1 ou «conversa séria (geralmente para repreender)». Note-se, porém, que é expressão por dicionarizar, apesar de ter certa frequência atualmente tanto no português de Portugal como no português do Brasil2. Talvez se trate de uma simplificação de «conversa de ao pé da orelha», no sentido de «conversa em que os interlocutores estão muito próximo um do outro», mas esta conjetura não encontra confirmação pela mesma razão de a expressão não ter registo lexicográfico.

1 José Cunha Oliveira, Escritas e Falares da Nossa Terra (3/08/2008): «conversa de pé de orelha – conversa confidencial, confidência».

2 A secção histórica do Corpus do Português não faculta nenhuma ocorrência da expressão, mas do conjunto de textos em português contemporâneo (com amostras de todas as variedades atuais) extraem-se 23 ocorrências identificáveis quer com o português de Portugal quer com o português do Brasil.

Pergunta:

Gostaria de saber se é aceitável pronunciar-se e escrever-se «meter-se à bulha». Por exemplo, no Infopédia, pode ler-se «meter à bulha – provocar a discórdia entre». Mas está correto dizer «meter-se à bulha», querendo esta última construção significar «meter-se numa rixa, envolver-se numa quezília»? E, neste sentido, existe alguma palavra que seja definida como «grande luta, grande desavença»? Ou as palavras bulha e rixa significam, só por si, uma grande rixa?

Grato pela atenção.

Resposta:

«Meter à bulha» é de facto expressão registada com o sentido apontado na pergunta, mas o uso reflexivo de meter nesse contexto – «meter-se à bulha» – afigura-se estranho, porque cancela a sugestão de manipulação associada a «provocar discórdia entre» (entenda-se: quem manipula exclui-se da ação que quer influenciar ou desencadear). No entanto, a expressão «à bulha» é compatível com outros verbos no sentido de «meter-se numa rixa/numa quezília/em pancadaria»; por exemplo, «andar à bulha» ou «pôr-se à bulha». Além disso, em alusão ao envolvimento numa discussão ou numa cena de violência, meter é igualmente possível mas numa construção ligeiramente diferente: «meter-se na bulha», isto é, «meter-se na discussão ou na pancadaria». Note-se ainda que bulha pode ter valor intensivo, próximo do de «grande desavença», visto que também significa «movimentação e confusa» (Dicionário Houaiss); e o mesmo se pode dizer de rixa, definível como «grande tumulto e perturbação da ordem» (idem).

Observe-se, por último, que a expressão «à bulha» faz parte do discurso informal e até corrente, e, nesse contexto, é adequada, mas, num texto literário, pode também ser adequada. Já num texto administrativo pode parecer estranha ou desadequada, e, nesse caso, pode ser substituída por rixa ou altercação: «envolveram-se numa rixa» «envolveram-se numa/tiveram uma altercação».

Pergunta:

No termo acento, não me é claro o motivo do substantivo ser escrito acento, e não "acêntuo", que concordaria perfeitamente com a conjugação da sua forma verbal: acentuo, acentuas, acentua, etc. A exemplo do substantivo perpétuo: perpetuo, perpetuas, perpetua, etc. De acordo com o que eu conheço da lógica da língua portuguesa, "acêntuo" deveria ser um substantivo (bem como "átuo", em vez de ato), e, "acento", a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo "acentar", que não é uma palavra com significado na língua portuguesa. Qual a razão dessa forma não vigorar na língua portuguesa, ou o porquê de usar-se acento, e não "acêntuo"?

Resposta:

A pergunta parte do pressuposto (errado) de que as palavras acento (nome), perpétuo (adjetivo) e ato (nome) derivam de alguma forma direta dos verbos com que relacionam, respetivamente, acentuar, perpetuar e atuar. E parece também julgar-se que, aceitando acento como nome, então – prevendo a eventualidade de se contra-argumentar com um resultado ilegítimo –,  também se deve aceitar "acento" como 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo de um verbo com a forma de infinitivo "acentar", em lugar da que de facto é legítima, acentuar.

Nada disto, porém, funciona como supõe a pergunta, porque sucede que, na estruturação de uma família de palavras, não contam apenas a derivação ou a composição que é possível no português contemporâneo. Apesar de se observarem alternâncias vocálicas em pares como almoço (1.ª pessoa do presente do indicativo do verbo almoçar, com o aberto)/almoço (substantivo, com o fechado), não são elas de molde a concluir que a segunda forma deriva da primeira no contexto linguístico contemporâneo. De forma semelhante, não se pode afirmar que o adjetivo perpétuo  deriva de perpetuo (1.ª pessoa do presente do indicativo do verbo perpetuar) ; e menos ainda é aceitável pensar que haverá uma «lógica da língua portuguesa» a legitimar as formas nominais "acêntuo" e "átuo", que, evidentemente, estão incorretas. É preciso ter em conta a história das palavras, considerando a diacronia quer das suas relações de derivação quer da sua integração no léxico do português.

Assim, consultando o