Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão «ter à mão» pode incluir um pronome possessivo? A título de exemplo, a pergunta que se segue estaria correta: «Por acaso, tem um lápis à sua mão?»?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

É possível associar possessivos à expressão, uso que se encontra atestado, embora não seja tão frequente como o de «à mão»1:

1. «Estava ali, bem à minha mão, a possibilidade de encontrar um som» (do corpus Linguateca).

2.  «Se nenhuma das opções estiverem à sua mão, pode sempre dar o seu dinheiro por bem gasto a bater o pé, quando Prince se propõe transformar Alvalade em estádio-discoteca» (idem).

Em 1. e 2. «estar à mão» significa o mesmo que «estar ao alcance/perto/próximo (para utilização)». A expressão pode também associar-se ao verbo ter, como em «ter alguma coisa à mão», isto é, «ter alguma coisa ao alcance».

Apenas consideramos contextos em que se pode considerar que a construção com o possessivo é praticamente equivalente à expressão sem possessivo. É óbvio que «à minha/tua/sua/nossa/vossa mão» é perfeitamente aceitável em expressões como «chegar à mão», «vir à mão», «parar à mão» ou «vir ter à mão»; exemplos (extraídos do Corpus do Português, de Mark Davies):

3. «A salvação da quinta podia estar nos fornos. Estaria – tinha a certeza, se eles viessem parar à sua mão» (Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953).

4. «O dinheiro dar-me-á para viver os poucos anos de vida q...

Pergunta:

Comumente utilizado no meio forense, qual seria a pronúncia mais adequada do vocábulo interregno em bom português?

Resposta:

O substantivo interregno – que significa « período entre dois reinados, em que não há rei hereditário ou eletivo», «período em que algo deixa de estar em vigor ou um cargo deixa de ser preenchido», ou simplesmente «interrupção temporária» (Dicionário de Língua Portuguesa, disponível na Infopédia – tem e aberto na sílaba tónica -rre- e a sequência de sons [gn] na última sílaba.

Portal da Língua Portuguesa indica que a transcrição fonética da palavra, de acordo com o padrão aceite em Portugal, é [ĩtɨʀˈɛgnu]. Segundo a mesma fonte, no Brasil ou em parte deste país, regista-se a tendência para inserir uma vogal no meio da sequência [gn]: [ĩteɦˈɛgə̃nʊ] (Rio de Janeiro) e [ĩtexˈɛgənʊ] (São Paulo). Apesar disso, considera-se que a pronúncia correta é sem a inserção (epêntese) de vogal1 (cf. registo da palavra interregno pronunciada por uma falante de sotaque brasileiro no sítio Forvo).

1 Convém assinalar que, na transcrição do Portal da Língua Portuguesa, pode parecer inusitado representar-se com o símbolo [ə] o segmento vocálico inserido no meio do encontro consonântico [gn] no contexto das variedades linguísticas brasileiras. Note-se, porém, que o símbolo mencionado, geralmente conhecido como schwa (aportuguesamento xevá, segundo o Dicionário Houaiss), aplica-se geralmente a...

Pergunta:

Gostaria de lhes fazer uma pergunta relativa à pronúncia das letras c e s. Reparei que alguns portugueses (mesmo apresentadores da RTP) pronunciam estas duas letras como [ʃ], quando seguidas de e ou i (em palavras tipo cerca, cinco, sete). Qual pode ser a razão ou explicação desse fenômeno fonético?

Muito obrigado pelos esclarecimentos.

Resposta:

As palavras em questão, isoladas, descontextualizadas, têm [s] inicial, e não [ʃ]1 – por outras palavras todas começam pelo s de sal, e não pelo ch de chave ou o x de Xavier. No entanto, pode acontecer que, no encadeamento de uma frase, no português de Portugal, essa consoante inicial possa ser assimilada a um [ʃ] que a preceda, por exemplo, um morfema de plural.

Dando exemplos:

1- «Os cerca de cinco milhões de euros de que falei estão perdidos.»

2- «Os Cinco são uma criação de Enid Blyton

3- «A Branca de Neve e os Sete Anões é uma história longa.»

Em 1, 2 e 3, dá-se o encontro de [ʃ] e [s], tal como ocorre em nascer ou descer, palavras cuja pronúncia cuidada corresponde à sequência [ʃs]: [nɐʃ’seɾ], [dɨʃ’seɾ] (cf. Portal da Língua Portuguesa).

Contudo, na pronúncia menos tensa, de débito rápido, mais informal, essa sequência pode reduzir-se a [ʃ]: «o[ʃ]erca...», «O[ʃ]inco...», «O[ʃ]ete Anões...», na[ʃ]er, de[ʃ]er2.

Este fenómeno não tem que ver com as vogais e e i. Na verdade, não é determinado pelo contexto vocálic...

Pergunta:

Em conversa com pessoas de diversos pontos do país reparei que existem várias formas de chamar às divisões de uma casa e também alguns elementos. O mais que mais me chama a atenção é a «casa de banho» que também recebe o nome «quarto de banho». Já no Brasil usam banheiro ou privada. E também o lavabo, que seria mais pequeno apenas com lavatório e sanita, ou caso se tratasse de instalações públicas, embora exista sempre uma pressão muito grande para a utilização de anglicismos como w. c. O mesmo acontece com walk-in closet, para o qual não conheço tradução. Por outro lado também fui confrontado com a utilização de «casa de jantar» para denominar a «sala de jantar», no entanto também encontrei «casa de jantar» para representar um móvel da sala onde se guardam as louças. Existem formas mais e menos corretas de chamar estes espaços?

Resposta:

Não havendo uma nomenclatura fixa ou unívoca para denominar cada uma das divisões de uma casa, não se impõe a necessidade de distinguir entre formas corretas e incorretas, desde que seja salvaguardada a sua compatibilidade com a função de cada compartimento. Existe certa variação regional, mas, em Portugal, tendem a predominar termos como «casa de banho», «casa de jantar» – esta a par de «sala de jantar» –, mas «sala de estar», e não *«casa de jantar». Nada disto impede que se usem outras denominações.

Mesmo assim, reconheça-se que há termos estáveis, usados entre arquitetos e engenheiros civis. Em Portugal, as páginas de Trabalhar com Arquitectos (este sítio mantém a ortografia anterior ao acordo ortográfico em vigor), disponibilizam um glossário, do qual, em relação a compartimentos de uma habitação,  constam os seguintes termos, sem modificadores que lhes restrinjam o sentido:

– compartimento: «Cada uma das divisões de uma casa.»

– sala: «Compartimento principal de uma casa, geralmente destinado a usos sociais. Qualquer compartimento de uma casa (à excepção dos quartos de dormir), destinado a vários usos. Designação antiga da cortina que entesta com o baluarte.»

– casa: «1-Edifício destinado a habitação. 2-Cada uma das divisões de uma habitação.»

Destas definições, é possível concluir, por exemplo, que, pelo menos, no que ao uso da expressão «sala de jantar» diz respeito, é legítimo substituí-la pela alternativa «casa de jantar» (conclusão muito semelhante também se tira da consulta do

Pergunta:

Creio que o futuro é um composto do infinito do verbo que se está a conjugar com o verbo haver. Assim sendo, como se explicam as formas do plural?

Resposta:

A pergunta parece referir-se à história do futuro do indicativo (no Brasil, futuro do presente do indicativo), mais precisamente ao desenvolvimento das terminações -emos e -eis da 1.ª e 2.ª pessoas do plural; exemplos: cantaremos, cantareis (1.ª conjugação); comeremos, comereis (2.ª conjugação); partiremos, partireis (3.ª conjugação). Estes sufixos flexionais remontam às 1.ª e 2.ª pessoas do plural do presente do indicativo do latino habere, isto é, habemus e habetis, as quais evoluíram para havemos e haveis, no português contemporâneo, formas que ocorrem quando o verbo haver é empregado como auxiliar: «havemos de cantar», «haveis de partir». Como explicar que, por um lado, havemos e haveis, e, por outro, -emos e -eis têm origem comum?

Acontece que a flexão do futuro do indicativo se explica historicamente pelo latim vulgar. É o que faz, por exemplo, o linguista galego Manuel Ferreiro, na sua Gramática Histórica Galega (Laiovento, 1996, p. 297), que, relativamente à génese do futuro do indicativo e à sua evolução semântica e morfológica, propõe uma descrição também válida para o português, pois, como se sabe, até ao século X...