Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A propósito do conceito decrescimento – tese segundo a qual a degradação progressiva do ambiente e dos recursos do planeta só tem como saída a inversão da lógica depredadora do capitalismo* − e como não encontro a palavra no arquivo do Ciberdúvidas, peço-vos uma abordagem sobre a formação desta palavra e deste sentido novo.

* Cf. Serge Latouche, "As vantagens do decrescimento" (Le Monde Diplomatique – Brasil, 1/11/2003) e Decrescimento Sereno, Lisboa, Edições 70, 2012;  "Serge Latouche, o precursor da teoria do decrescimento, defende uma sociedade que produza menos e consuma menos", Instituto Humanitas Unisinos, 3/09/2013; Ana Poças Ribeiro, "A economia contra os limites da Terra: o decrescimento sustentável é a solução", Público, 4/09/2018

Resposta:

Trata-se de um derivado correto do verbo decrescer, formado por sufixação (decresci+-mento) e registado por alguns dicionários como sinónimo de decréscimo (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Poder-se-á argumentar que o uso de decréscimo, muito mais frequente, torna supérfluo o de decrescimento. Contudo, tendo em conta os usos de crescimento como sinónimo de «progresso, avanço, desenvolvimento económico», afigura-se útil o emprego de decrescimento como antónimo, no contexto da crítica à visão desenvolvimentista das últimas décadas no campo político e económico.

Pergunta:

Qual é a regência de conveniado?

Grato.

Resposta:

A forma conveniado constrói regência com a preposição com: «dirigiu-se ao hospital conveniado com o centro de saúde» (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Conveniado é o particípio passado de conveniar, verbo classificado como brasileirismo e que significa «estabelecer convénio (com)» (Dicionário Houaiss, 2001). Esta forma participial, conservando a regência com a preposição com do verbo correspondente (conveniar com), é também empregado como adjetivo, na aceção de «que mantém convénio, em expressões como «hospital conveniado» (Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, 2003).

Em Portugal, em referências a unidades que têm acordos com diferentes sistemas para prestar cuidados de saúde, empregam-se as expressões «ter acordo» e (mais formalmente) «ter convenção»: «o hospital é particular, mas tem acordo/convenção com a ADSE».

Pergunta:

Tratativa pode ser termo utilizado, relacionando-o a tratamento de saúde?

Resposta:

A palavra tratativa pode ocorrer como substantivo e como adjetivo. No segundo caso, é equivalente a terapêutico e curativo, o que o torna compatível com o tema dos cuidados de saúde. No entanto, o seu uso parece mais característico do português do Brasil.

Com efeito, entre os dicionários publicados em Portugal, vê-se que o vocábulo ou não é registado – caso do Dicionário de Língua Portuguesa (ver Infopédia) e do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ou é associado à variedade brasileira. É o que acontece com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que regista tratativa como substantivo usado no Brasil com o significado de «acordo entre duas ou mais partes. = AJUSTE, TRATADO, TRATO».

Quanto a dicionários brasileiros – foram consultados o Dicionário Houaiss (2001) e o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2003) –, observa-se que se acolhe tratativa como substantivo, com uma definição idêntica à antes citada; p. ex.: «negociação, acordo: É conveniente uma tratativa mais cautelosa para a Alca.» (Dicionário UNESP). Relativamente ao seu emprego como adjetivo, só o Dicionário UNESP o atesta: «de tratamento; terapêutico: Mas todos tinham o propósito tratativo, curativo

Pergunta:

Soube pelo Google que se trata de expressão de origem portuguesa. Vocês saberiam me dizer a motivação (ou etimologia) da expressão «vaso ruim não quebra»?

Resposta:

Não é possível garantir que o provérbio em questão tenha origem portuguesa, mas é possível afirmar que na sua génese está uma metáfora.

O Dicionário de Provérbios (edição do Município de Pinhel e do autor, Manuel Madeira Grilo, 2009) interpreta o provérbio do seguinte modo: «A má qualidade não ajuda ao desaparecimento das coisas. Os maus morrem tarde.» Há, portanto, uma interpretação quase literal, em que se menciona um vaso como se poderia referir (por metonímia) qualquer outra coisa, para sublinhar que da falta de qualidade não se infere pouca durabilidade. Esta constatação é depois transposta metaforicamente, como juízo moral, em que «vaso ruim» está por «pessoa má» e «não quebra», por «resiste» ou «sobrevive (sem ser castigada)». Por outras palavras, a longevidade dos maus é prémio injusto, porque se traduz na impunidade e na perduração da maldade.

Note-se, porém, que o provérbio não configura apenas uma visão sobre o sentido do mal em sociedade. Com efeito, o Dicionário de Provérbios Francês/Português/Inglês (Contexto, Editora, 2000), de Roberto Cortes de Lacerda, Helena da Rosa Cortes de Lacerda e Estela dos Santos Abreu, inclui o provérbio em questão numa série de outros em português, equivalentes ao francês «pot fêlé dure longtemps» (tradução livre: «vaso rachado dura muito tempo»), que se interpreta como «cacochymes, égrotants et hypocondres souvent vivent longtemps» (tradução livre: «caquéticos, doentes crónicos e hipocondríacos vivem frequentemente muito tempo»). A referida série é constituída pelos seguintes exemplos:...

Pergunta:

Pode dizer-se que a palavra inovação remete para uma "introdução" da novidade, na medida em que o prefixo i se refere a um movimento para dentro (cf. resposta); e que a palavra renovação remete para uma "repetição" da novidade, sendo o prefixo re entendido como elemento designativo de repetição? Poder-se-á a partir daqui extrapolar que no primeiro caso não é admissível que a acção recaia sobre um "objecto" existente (não fazendo sentido dizer "o mundo inova-se", mas sim "o autor inova"), sendo essa pré-existência necessária no segundo caso (fazendo aqui sentido "o mundo renova-se", mas não "o autor renova.")?

Resposta:

A interpretação proposta tem alguma adequação na atualidade, porque, na verdade, inovar é muitas vezes sinónimo de criar (alguma coisa nova), enquanto renovar é equivalente a «fazer com que fique como novo; mudar o que já existe» (ver Textos relacionados). Nesta perspetiva, dir-se-ia que inovar é intransitivo («o autor inova»), e renovar, transitivo direto («o autor renova o mundo»), legitimando assim o uso deste último verbo na conjugação reflexa («o mundo inova-se»). Contudo, vê-se que há registos dicionarísticos que abonam o uso transitivo e reflexo de inovar, numa aceção muito semelhante, se não idêntica, à geralmente atribuída a renovar:

(1) «Inovou a pintura de sua casa.» (Dicionário Houaiss, 2001, s. v. inovar)

(2) «É preciso inovar a empresa. » (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, s.v. inovar)

(3) «A sociedade inova-se, progride.» (idem, ibidem)

(3) «O engenheiro inovara o fabrico dos móveis.» (Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Texto Editores, 2006, s. v. inovar)

(4) «A sua forma de pensar inovou-se após a emigração.» (idem ibidem)

Em todos estes exemplos, mesmo que se admita que a noção veiculada é a...