Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O primeiro significado que um dicionário apresenta sobre colo (do latim, collum) é o seguinte: «parte do corpo que liga a cabeça ao tronco; pescoço.»

Não é de estranhar, portanto, que as palavras colar, colarinho, coleira, torcicolo, tiracolo e cachecol pertençam à mesma família lexical. O verbo degolar (latim decollare) pertence, igualmente, a esta família, com o significado de cortar o pescoço.

A minha questão é a seguinte: «pegar uma criança ao colo» terá tido origem no facto de a criança passar um dos seus bracinhos pelo pescoço de quem a traz, para uma maior sustentabilidade?

De facto, colo também tem o significado de «regaço»: «sentar ao colo» e «pegar ao colo» será, igualmente, colocar no regaço ou nos braços, encostando ao peito.

Resposta:

A palavra colo passou efetivamente por uma alteração semântica importante, desde a Idade Média até ao século XVI, como aponta o filólogo galego Ramón Lorenzo1, que lhe atribui duas aceções medievais, «pescoço» e «ombro»; o vocábulo evoluiu, até tornar-se sinónimo de regaço. Esta aceção parece exclusiva dos usos locativos do vocábulo, como sejam «no colo» ou «ao colo», bem como do emprego adjetival de «de colo» («criança de colo»).

Bem esclarecedores são Joan Coromines e José Antonio Pascual, no seu Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico (2012), cuja proposta de descrição diacrónica da semântica de colo em galego é, afinal, também a do português2:

«El gallego colo, además de ‘cuello’, ha tomado el sentido de ‘regazo materno’ (Castelao 97.7), lo cual se explica por la locución trager o levar a colo ‘llevar a cuestas’ (también catalán portar a coll); ya aparece así en una CEsc. de Alfonso el Sabio (R. Lapa 31.8; «escud’a colo en que sêve un capon» 57.4; «tragía a seu colo hũa imagen d’almafí» Ctgs. 399.6); y como las mujeres suelen llevar a los niños a cuestas, y así aparece en otra ctga. («de trager, por seu pediolo, / o filio doutro no colo» CEsc. 106.6, 12, 18), o lo tienen en el regazo, se pasó de lo uno a lo otro [...].»2

[tradução: «O galego colo, além de "pescoço", tomou o sentido de "regaço materno (Castelao 97.7), o que se explica pela locução trager3 ou levar a colo "levar às costas (também em catalão portar a coll); já parece assim numa cantiga de escárnio de Afonso [X], o Sábio (Rodrigues Lapa 3...

Pergunta:

Na tradução da fábula "O lobo e o cordeiro", deparei-me com a palavra sire (título antigo dado aos reis e aos senhores feudais), seguido do pronome "Vossa Majestade" (em francês: «Sire, répond l'agneau, que Votre Majesté..».). Gostaria de saber se se pode permutar o pronome Senhor (pensei em usá-lo no lugar de Sire) pelo de Vossa Majestade.

Obrigado.

Resposta:

Em português, deve usar senhor (com maiúscula, para marcar deferência: Senhor), uma vez que já na Idade Média «senhor» era usado como vocativo. Note que sire era o «tratamento que se dava aos reis de França, senhores feudais, imperadores e outros personagens venerandos» (Dicionário Houaiss) e tem origem no «francês [medieval] sire (c. 980) "senhor, mestre", (c.1050) "título dado a um soberano", (c. 1165) "junto ao nome próprio, título de cortesia dado ao burguês (e depois aos homens do povo)", do latim senior, oris "mais antigo, mais velho"» (idem; os algarismos marcam a datação dos documentos em que ocorre a palavra).

Pergunta:

O verbo perceber no Brasil, é ligado na maioria das vezes ao sistema sensorial, à percepção:

«Você percebeu aquele movimento entre as folhas?»

«Você percebeu aquele ruído na parede?»

«Percebes a corrente de vento frio pela fresta da janela?» etc..

A acepção de «receber», também é usada, principalmente no linguajar jurídico ou mais culto, no sentido ligado à razão, como entender ou compreender, embora veja o seu uso constante em Portugal, soa muito estranho aos ouvidos brasileiros, sabe-se quando se deu essa diferença? Ou mesmo por quê?

Obrigado.

Resposta:

Não foi possível identificar o momento em que perceber passou a significar «compreender, entender» no português de Portugal, uso que se ilustra, por exemplo, com exemplos de Miguel Torga e Júlio Dinis:

1. «Mal apareci em Sendim, intimou-me a comparecer na delegacia, para registar a carta e ser colectado. Tão ignorante que não percebeu o " villaregalensi " do latim. Sem uma palavra de boas-vindas, mesmo hipócrita, deixou-me partir.» (Miguel Torga, A Criação do Mundo)

2. «– Previ essas palavras, prima Madalena; por isso hesitei. Lamento sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma tão simpática e adorável boa-fé nos outros, que é a maior prova de candura que se pode dar do próprio carácter.

D. Vitória não percebeu nada deste rápido diálogo; por isso exclamou:

– Mas que estão vocês aí a dizer? De quem falam? Eu, se vos entendo! » (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, 1868)

No entanto, é também possível detetar este uso em escritores brasileiros do século XIX:

3. «Félix sentiu pungir-lhe um remorso, e teve ímpeto de cair aos pés da bela viúva. Murmurou algumas palavras – que ela não percebeu ou não ouviu, até que o menino chamou a atenção de ambos, dizendo:

– Vamos...

Pergunta:

Qual é a origem do nome da cidade de Elvas?

Muito obrigada pela atenção. Votos de continuação de bom trabalho!

Resposta:

A etimologia do topónimo Elvas, embora possa situar-se num contexto de transmissão árabe e remontar a um estrato pré-romano, continua por esclarecer cabalmente.

A hipótese que parece ter mais aceitação está sintetizada por José Pedro Machado no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa:

«Em árabe parece na forma elbax (Edrici, pp. 186/225), de origem obscura, já que a doutrina de X. Fernandes (II, p. 124) é inaceitável. É daquela forma árabe que provém diretamente a portuguesa. Em 1229, Eluas e Eluis (Leges, pp. 619-620). Em 1263 aparece "Steuan rrodriguiz delvas... Afonso eanes delvas" (Portel, n.º 15, p. 23); em St. Maria: "ena vila d'Elvas" (n.º 399).»

Esclareça-se que Edrici (1100-1165) – ou al-Idrisi – foi um grande geógrafo árabe nascido em Ceuta, que menciona nas suas obras várias localidades portuguesas. Quanto a X. (Xavier) Fernandes, considera este, no seu Topónimos e Gentílicos (vol. II, 1943, pp. 124-125), que Elvas tem origem no antropónimo romano Elvius ou Helvius, mas trata-se de hipótese muito discutível.

Pergunta:

Gostaria de saber se se pode empregar a palavra cozinhação em português.

Resposta:

É uma palavra que, embora não se encontre dicionarizada, é possível – trata-se de um vocábulo bem formado, derivado do tema do verbo cozinhar – e até tem tido uso. O valor que se lhe associa é geralmente um tanto irónico, significando «fazer comida convencional, que até pode ser saborosa, sem chegar ao requinte da arte culinária ou ter preocupações de tipo gastronómico»:

1. «A-Leng revelara uma grande queda para a cozinhação. Confecionava a preceito pratos de culinária chinesa, mas ainda não conseguia o apuramento ideal na comida macaense e na portuguesa.» (Henrique de Senna Fernandes, A Trança Feiticeira).

Observe-se, porém, que não é uma palavra acerca da qual se possa afirmar que tem grande difusão ou que é aceite sem hesitação, ou, ainda, que é sempre adequada a qualquer discurso que verse sobre cozinha – não o será, dada a sua carga irónica ou até depreciativa.