Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
124K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Hoje ouvi na TV: «Já chegou o atleta que sagrou-se campeão!»

Então, não deveria dizer-se: «Já chegou o atleta que se sagrou campeão!»?

Ou estamos perante mais uma modernice por conta do acordo ortográfico?

Resposta:

Com efeito, como refere o consulente, a frase correta seria:

(1) «Já chegou o atleta que se sagrou campeão!»

A colocação do pronome se antes do verbo (em posição proclítica) deve-se à presença do pronome relativo que, o qual funciona como atrator de próclise, ou seja, atrai o pronome para a posição antes do verbo.

Não é, porém, justo o consulente quando responsabiliza o Acordo Ortográfico de 90 pela construção incorreta. Como o nome do documento bem esclarece, ele apresenta um conjunto de normas que incidem sobre a grafia das palavras (a forma como se escrevem) e não sobre a construção das frases. Por este motivo, para sermos rigorosos, nunca poderemos considerar o AO90 responsável por maus usos no plano da sintaxe (construção frásica).

 Sigamos, pois, a máxima: «Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus!»

Disponha sempre!

Pergunta:

Ouço com frequência, especialmente no telejornal, algo de que dou exemplo – «os antibióticos perderam eficácia devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistirem...» – quando, penso, deveriam dizer «devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistir».

Num simples exercício para verificar a correção da mensagem: as bactérias têm capacidade de quê? – de resistir (aos antibióticos) e não de resistirem...

Resposta:

No caso em análise, identificamos a seguinte estrutura: o nome capacidade é acompanhado de uma oração subordinada adjetiva relativa. Verificamos que, nesta fase, o sujeito da oração relativa (bactérias) é diferente do sujeito da oração subordinante (antibióticos). Ora, nestes casos, quando o sujeito é diferente e está expresso, a concordância do infinitivo deve fazer-se com o seu sujeito, como acontece em (1):

(1) «Ele deu às crianças ordem para brincarem.»

Contudo, esta indicação é discutida por diversos gramáticos, pelo que não poderemos falar de uma regra, mas antes de uma tendência. Deste modo, a frase (2) também será aceitável:

(2) «Ele deu às crianças ordem para brincar.»

Por esta razão, será aceitável a construção com ou sem infinitivo flexionado:

(3) «Os antibióticos perderam eficácia devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistir(em).»

Disponha sempre!

Pergunta:

dicionário de Caldas Aulete dá para a locução adverbial «ao abrigo de» o valor de «defendido contra» em vez de «ao resguardo de».

Porém, como interpretar «um direito ao abrigo duma lei» como "um direito defendido contra"?

Muito obrigado!

Resposta:

A locução preposicional «ao abrigo de» pode, com efeito, ter o sentido de «defendido de», «protegido contra»1. Este sentido é ativado numa frase como a que se apresenta em (1):

(1) «Foi debaixo do telheiro ao abrigo da chuva.»

Esta locução pode também ser usada com o sentido de «autorizado por», «em conformidade com», o que se verifica em (2):

(2) «Foi transferida ao abrigo da lei da mobilidade.»

Este segundo sentido é o que estará presente na expressão apresentada pelo consulente, que será equivalente a:

(3) «Este é um direito autorizado pela lei / em conformidade com o previsto na lei.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

Pergunta:

A expressão «sinto-te a falta» em vez de «sinto a tua falta» está gramatical e sintaticamente correta? Se sim, serão intercambiáveis em termos de significado?

Desde já obrigado.

Resposta:

Comecemos por considerar a construção «sinto a falta» que, sem contexto e sem qualquer complemento, não é aceitável.

O nome falta pede um complemento introduzido pela preposição de, que lhe completa o sentido:

(1) «Sinto a falta do João.»

Ora, se a entidade sobre a qual recai o sentimento de falta for uma 2.ª pessoa, o sintagma introduzido por de será substituído pelo possessivo tua:

(2) «Sinto a tua falta.»

Por esta razão, não é aceitável a expressão «sinto a falta» sem a verbalização do complemento de falta

Relativamente à construção «sinto-te a falta», estamos perante um caso de pronominalização do complemento do nome falta, que, para a 3.ª pessoa do singular, está atestado, como se verifica em (3) e (4):

(3) «É o doido que em nós prega e nos deixa aturdidos. Às vezes consigo afastá-lo, mas sucede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado.. Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim»  (Raul Brandão, Húmus)

(4) «E talvez ela chorasse, e lhe sentisse a falta.» (Eça de Queirós, Alves e Companhia)

Esta construção é equivalente a «sinto a sua falta» ou «sinto a falta dele». 

Ora, o uso de 3.ª pessoa, será compreen...

Pergunta:

Será possível que tem gente que não sabe o significado da palavra de pior, por aqui, no Brasil para cometer essa verdadeira e imensa atrocidade («menos pior»...)?

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

O uso de pior está previsto nos compêndios gramaticais.

A forma pior substitui a construção «mais mal», quando mal é um advérbio, como acontece em (1):

(1) «Os meus alunos escrevem pior que os teus.»

Pior também se usa quando mais se combina com o adjetivo mau:

(2) «Esta receita é pior que a do João.»

Todavia se mais se combinar com uma construção adjetival ou participial iniciada por mal não se usa a forma pior1:

(3) «O texto do João está mais mal escrito que o do António.»

(4) «O modelo do Rafael está mais mal concebido do que o do João.»

Podemos, então, concluir que pior é uma forma do comparativo de superioridade, pelo que se quisermos construir um comparativo de inferioridade, não poderemos usar «menos pior». Teremos, antes de optar por «menos mal/mau».

Disponha sempre!

 

1. Não obstante, em alguns autores assinalamos o uso da formas sintética pior em construções onde seria expectável o aparecimento de «mais bem» ou «mais mal». Para mais informação consulte-se esta resposta.