Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Após conversa com uma colega de trabalho, ficamos na dúvida se, por exemplo, em e-mails, o correto é escrever-se «lamentamos os transtornos causados» ou «lamentamos o transtorno causado».

Neste sentido, solicitava esclarecimento.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, embora traduzam sentidos ligeiramente diferentes.

Os nomes que designam situações abstratas, como sentimentos, e que não são contáveis (isto é, que habitualmente não se quantificam, como acontece em «*dois medos»), são preferencialmente usados no singular1.

No entanto, se estes nomes designarem diferentes tipos de estados psicológicos ou as suas variedades, o plural será justificado.

Assim, se o que se pretende é designar um estado psicológico em geral ou uma situação típica, o singular será a forma mais ajustada:

(1) «Lamentamos o transtorno causado.»

Se se pretende fazer alusão a um conjunto de situações concretas, cada uma delas malsucedida, o recurso ao plural será justificado:

(2) «Lamentamos os transtornos causados.»

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da construção.

1. Não obstante, é possível usar estes nomes no plural, que passam a denotar um evento ou uma entidade concreta (cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 961).

Pergunta:

Será que há diferença entre benevolência e bondade?

Resposta:

As palavras podem ser usadas com um sentido equivalente de «desejar fazer bem aos outros»1:

(1) «A sua bondade levava-o a ajudar muitas pessoas.»

O sentido de bondade poderá, eventualmente, ser mais amplo do que o de benevolência, abarcando os sentido de «disposição natural para o bem» ou de «boa índole»:

(2) «Ele é a bondade em pessoa.»

Bondade surge ainda em construções fixas como:

(3) «Tenha a bondade de me acompanhar»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário Priberam (em linha)

Metadados
O conflito entre o domínio público e a vida privada

A origem e os significados da palavra metadados, que em Portugal entrou na ordem do dia devido ao chumbo da Lei dos Metadados por parte do Tribunal Constitucional, pela professora Carla Marques

Pergunta:

Quando é que devemos usar «ao contrário» e «pelo contrário»?

E qual é o valor das preposições a e por nas expressões?

Muito obrigada!

Resposta:

Nem sempre é fácil distinguir os contextos de uso das duas locuções e, em diversas situações, elas são mesmo equivalentes.

A locução «ao contrário de» é usada normalmente para expressar a oposição de algo, sendo equivalente a «contrariamente a», «ao invés de», «em oposição a»1:

(1) «Ao contrário do que tinha dito, ele não apareceu.»

(2) «Ao contrário dos gatos, os cães não arranham.»

A locução «pelo contrário» pode ser usada em dois contextos específicos com o significado de «exatamente o oposto»:

(i) indica a alternativa correta entre dois sintagmas alternativos:

(3) «O chão não está gasto, pelo contrário, até brilha.»

(ii) reforça uma negação feita anteriormente e introduz uma situação contrária:

(4) «Eu não vou contigo, pelo contrário, vou ficar aqui muito sentadinho.»

Todavia, em muitas situações o uso das duas locuções é opcional, pois o seu valor é equivalente, como se verifica em

(5) «Se, ao contrário / pelo contrário, quiser vir ao escritório, pode fazê-lo.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Venho perguntar pela extensão e abrangência do predicativo do sujeito, o que em alguns casos acho difícil de delimitar. Por exemplo:

Fiquei dececionado com o que fizeste.

Pareces um bandido da velho guarda.

És ridículo quando fazes essas coisas.

Muito obrigado!

Resposta:

O predicativo do sujeito é, segundo o Dicionário Terminológico, a «função sintática desempenhada pelo constituinte […] que predica algo acerca do sujeito», atribuindo-lhe uma propriedade/ caraterística, uma localização temporal ou espacial.

Neste âmbito, os constituintes com a função de predicativo do sujeito poderão ter naturezas muito distintas, indo de uma palavra isolada (1) a uma oração (2):

(1) «Ele está

(2) «Ele é o que melhor conhece os nossos hábitos mais antigos.»

Como se observa pelas frases acima, a extensão do constituinte não é um critério para identificação desta função sintática (ou de outra qualquer), mas sim a sua relação com o sujeito e a presença de um verbo copulativo.

Para delimitar o constituinte com função de predicativo do sujeito, teremos de identificar quais as palavras/grupos de palavras que estabelecem uma relação de maior proximidade. Assim, nas frases apresentadas pelo consulente, podemos sinalizar por meio de parênteses retos os constituintes que detêm maior proximidade e que, por essa razão, desempenham a função de predicativo do sujeito:

(3) «Fiquei [dececionado com o que fizeste].»

(4) «Pareces [um bandido da velha guarda].»

(5) «És [ridículo] quando fazes essas coisas.»

Na frase (3), o sintagma preposicional «com o que fizeste» é complemento do adjetivo dececionado. É no seu conjunto que este grupo de palavras incide, como predicador, sobre o sujeito.

Na frase (4), o grupo preposicional «da velha guarda» é complemento...