Um episódio da atual vida política portuguesa recuperou do esquecimento um sinal gráfico que há muito não se usa em Portugal: o trema, também conhecido como «sinal de diérese».*
Tudo se resume ao erro que se lia num documento submetido à aprovação do parlamento português: pedia-se a autorização de uma visita do presidente da República Portuguesa à Alemanha, a convite do seu homólogo neste país, deslocação que incluía a presença num evento erroneamente referido como “Burgerfest”, cuja forma correta se escreve Bürgerfest, com trema. Aparentemente desconhecendo que Burgerfest era grafia errada, um líder partidário aproveitou para criticar o presidente português, pela despesa da participação num alegado «festival de hambúrgueres». A verdade é que Bürgerfest, com trema, não se refere a um festival de hambúrgueres (Hamburger, ou, em inglês, hamburger e, com redução, burger), mas, sim, aos cidadãos (Bürger em alemão), a quem se dedica o evento.
É, pois, necessário assinalar que, na língua alemã, o trema constitui um diacrítico, isto é, funciona como sinal que altera o valor das letras a, o e u, que passam a ä, ö ou ü, para indicar um fenómeno de palatalização vocálica. Por exemplo, em Männer («homens»), o ä soa como o é do português pé; e em schön («belo, bonito») exibe-se a vogal que se ouve no francês peu.** Quanto a Bürger, o ü soa aproximadamente como o u do pronome francês tu ou como o u que se ouve na ilha de S. Miguel.
Em português, usou-se o trema, não para representar determinado tipo de sons, mas, sim, para indicar que duas vogais seguidas se liam e pronunciavam separadamente sem produzir ditongo (separação vocálica ou diérese), conforme a definição do termo trema que se lê no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: « sinal ortográfico (¨), que, na grafia portuguesa, se colocava por cima das vogais i e u para indicar que não formavam ditongo com a vogal precedente ou por cima do u precedido de q ou g para indicar que não formava grupo com essas consoantes.»
A 1.ª edição do Dicionário Houaiss, de 2001, dava um pouco mais de informação sobre o destino deste diacrítico: «a) na ortografia oficial do português de Portugal, esse sinal diacrítico foi abolido a partir de 1 de janeiro de 1946 b) na ortografia oficial do português do Brasil, [usava-se] tão-somente sobre o u, dos dígrafos gu e qu, nos vocábulos em que essa letra, seguida de e ou i, é proferida: agüentar, cagüira, eloqüente, eqüidade, qüinqüenérveo c) no passado, em ambas as ortografias, usou-se tb. o trema sobre o i e o u átonos, quando não formavam ditongo com a vogal que os precedia (diérese): saüdar, improficuïdade, viüvez, hebraïzar etc.» Entretanto, em edições mais recentes do dicionário brasileiro (versão em linha), revela-se que «[n]o português, com o Acordo Ortográfico de 1990, o trema passou a ser empregado apenas em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros (p.ex., mülleriano, a partir de J. Fritz T. Müller; hübnerita, a partir de Adolf Hübner).
A título de curiosidade, registe-se que o uso do trema no português, se teve adeptos, também encontrou críticos, pelo menos, em Portugal. Gonçalves Viana (1840-1914), que lhe chamava ápices ou cimalhas, considerava-o sinal escusado na ortografia do português: «Foi J. I. Roquete quem introduziu este uso francês, e felizmente tem tido poucos imitadores : moído é sem dúvida preferível a moïdo, saúde a saüde» (Ortografia Nacional, 1904, p. 195 ). O Formulário Ortográfico de 1911 não o mencionava, e o Acordo Ortográfico de 1945 não o admitia (Base XXVII http://) « O trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido em palavras portuguesas ou aportuguesadas.» No Brasil, o trema teve outra fortuna, mas acabou por ser abolido com a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, conforme o n.º 1 da Base XIV.
Enfim, reconheça-se que o trema sempre teve vida difícil em Portugal...
* O erro ocorre no final do primeiro parágrafo do “Projeto de Resolução n.º 273/XVII/1.ª” (agradeço a Paulo J. S. Barata a chamada de atenção para este documento). Na imagem, pormenor do cartaz associado à promoção dos cursos de língua alemã do Goethe Institut em Portugal no ano letivo de 2025/2026 (fonte: página do Goethe Institut Portugal no Facebook, 12/09/2025). Tradução das palavras e da frase em alemão: Hamburger = hambúrguer; Hamburg = Hamburgo; Bürger = cidadão; Ein Bürger der Stadt Hamburg isst ein Hamburger = «um cidadão da cidade de Hamburgo come um hambúrguer».
** Deve mencionar-se ainda o ditongo äu, em Häuser, «casas», com o oi do português lençóis.