Crónica que se transcreve do jornal Público, do dia 29/06/2015, criticando-se nela, asperamente, o novo nome adotado para os territórios da margem sul do Tejo, em Lisboa.
[Sobre este mesmo assunto, vide, ainda: Lisbon South Bay ou o Sul ridicularizado.]
Desde a passada quinta-feira [24/06/2015] que a malta da Margem Sul já não mora na Margem Sul. Graças a Deus! Atravessar a ponte todos os dias, passar os fins-de-semana no centro comercial, andar vestido de fato de treino e capuz dos pés à cabeça seja Verão ou Inverno, ser assaltado à terça-feira, viver num “têdois“* em Corroios, andar de autocarro, tudo isso acabou! Porque agora, meus caros, agora, vivemos todos na Lisbon South Bay! Uau! Fantástico! A seguir a isto só falta a cerimónia dos Óscares no Incrível Almadense e está feito, vivemos todos na América!
Sinceramente, na minha lista das dez melhores ideias para baixar as calças a quem nos visita, esta está, indubitavelmente, entre as três primeiras (a seguir aos famigerados West Coast of Portugal e Allgarve, hoje e sempre, de pedra e cal, no topo da lista).
Infelizmente, se há qualidade inerente à estupidez humana é esta impressionante capacidade de nos surpreender, de constantemente se reinventar, assim trazendo, para mal de todos nós, novos mundos ao mundo. Porque a estupidez, associada à ignorância, é o pior dos males, e uma consequência directa da crise humanitária que, ao longo dos últimos quarenta anos, viola Portugal. Sem que de Portugal se ouça um queixume. O resultado prático está à vista: hoje perdemos a nossa identidade, hoje perdemos a nossa língua, hoje perdemos o nosso país, os nossos pais e o nome que nos deram.
Hoje baixamos as calças e não retaliamos, nem tão-pouco votamos. Ao invés, preferimos comunicar noutra língua e noutras línguas, às vezes como uma catarse (pode ser que assim, ao sair de casa, já não esteja na Cruz de Pau), muitas vezes porque temos fome e já estamos noutro país. Porque, por alguma razão, na América, aquela que agora nos muda o nome, ainda ninguém se lembrou de mudar o nome de Manhattan para “Miratejo de Nova Iorque", de modo a atrair mais turistas a esta pérola civilizacional tão representativa da nossa muito querida Margem Sul. Assim sendo, e porque os americanos não vão mudar os nomes das suas cidades e das suas pessoas, por que carga de água temos nós de mudar os nossos?
Não, a Margem Sul não é, nem será, a Lisbon South Bay. No mínimo South Bay, por favor, não nos insultem e metam a Lisbon vocês sabem muito bem onde! E já agora, e porque não, “Allmada“? E que tal “Sausage Saucers“ (Paio Pires)? Infelizmente não consigo traduzir Murfacém, senão era essa a próxima...
Meus senhores, somos portugueses, falamos em português e não seguimos o Acordo Ortográfico1. Ainda temos orgulho nas nossas origens e não podemos ouvir falar de espanhóis. Por conseguinte, não nos vilipendiem as raízes culturais, as quais são, verdadeiramente, as embaixatrizes de Portugal no mundo e a fonte mais segura de investimento, estrangeiro ou nem por isso, assim garantindo um futuro mais risonho, senão para nós, então para os que cá ficam.
* Um "têdois" (numa grafia mais correta, «um tê dois») é a forma de exprimir por extenso a sigla T2, referente a um apartamento com uma sala e dois quartos de dormir. Os códigos T0, T1, T2, etc. são usados em Portugal e constituem uma «tipologia dos fogos, segundo o n[úmero] de quartos de dormir» (Estatísticas da Construção e Habitação 2010, documento em linha do Instituto Nacional de Estatística, 2011, pág. 6).
1 N.E. – Em nome da verdade dos factos e da seriedade da argumentação invocada – aqui, como num outro recente texto E não proibiram o Inglês!, publicado no mesmo jornal, sobre o uso desbragado de estrangeirismos nos media portugueses – importa sublinhar o despropósito da responsabilização do Acordo Ortográfico no uso sem critério dos estrangeirismos nos “media” portugueses. Uma constatação fácil de aferir, por exemplo, na (re)leitura nos Textos Relacionados (ao lado) dos múltiplos registos críticos sobre os «estrageirismos sem freio» no espaço público nacional – muitíssimo antes (e independentemente) da entrada em vigor do Acordo Ortográfico.
In jornal Público do dia 29/06/2015, tendo-se respeitado a opção do diário português e do autor em seguirem a antiga norma anterior ao Acordo Ortográfico.