«Há [...] uma pergunta a que não se pode escapar: e como se vence [o festival da Eurovisão] cantando em português? O que é o mesmo que perguntar, o que nos diz a nós e porque é que também diz a tanta gente que não sabe a língua? Para todos os que sentimos a gravidade da discussão que caricatura o mundo na dicotomia do globalismo versus localismo, esta questão é difícil e coloca-nos problemas. A todos.»
[Francisco Louçã, jornal Público do dia 19 de maio de 2017]
Da maré de entusiasmo já se disse tudo: que ocupou os palcos de massas, que são, como toda a gente sabe, Fátima, o Marquês de Pombal e a televisão; que encheu o país de cores para todos os gostos; que é uma série perfeita de sucessos imprevistos, do golo de Éder até ao derreter do gelo na Eurovisão; que se percorreram caminhos de transgressão mas tudo devidamente consentido, como o paganismo da exibição dos milagres sobreposto ao suave politeísmo da multiplicação dos santos, como a canção que desafia os cânones pop ou o unilinguismo inglês, como a eleição de um candidato na ONU que, sendo da casa, não tinha padrinhos nos Olimpos. São tudo dias felizes, surpresas amáveis e heróis encantadores. Se houvesse um guião celestial para estas coisas, não poderia inventar melhor do que a arrancada de Éder, a bonomia de Guterres, a discrição de Rui Vitória, a delicadeza de Salvador Sobral. Tudo perfeito.
Perfeito? Cuidado. Nem neste mundo de sonhos há perfeição. Alguma razão haverá para aquela desconfiança matreira, nada de entusiasmos demasiados, não houve um feitiço que nos transmutou de sapo em príncipe, o país é o que era e ficou onde estava. Haverá alguém que, talvez agora mais discretamente, nos vai lembrar a percentagem de jovens obesos por serem condenados a alimentação deficiente, ou os dois milhões e meio de pessoas com menos de 400 euros por mês. Ou serão as palavras dessa realidade oculta a prova do tal pessimismo imobilista, a dor de Portugal, a saudade de si próprio, que não vê o que reluz?
Ora, vamos, alguma coisa mudou. Mas exactamente o quê? Tomemos o caso da Eurovisão. O festival é uma pepineira, os actores seguem o roteiro da lantejoula, as canções são fatelas e o guião é Las Vegas em parolo. Ora, por isso mesmo é que brilhou alguém que «fugiu do rebuscado», se atreveu a lembrar que «a música não é fogo de artifício» e que uma canção deve ter alguma coisa para dizer. Foi isso que nos encantou, não foi? Foi Salvador e Luísa Sobral terem rejeitado o ajeitamento festivaleiro, foi terem cantado um amor sofrido em que cada um de nós descobre alguma da sua vida, foi não quererem ser heróis. Custa-me ver nisto um «enriquecimento da marca Portugal», seria poucochinho, mas percebo que, se o feito é grande, muitos queiram puxar a brasa à sua sardinha.
Há no entanto uma pergunta a que não se pode escapar: e como se vence cantando em português? O que é o mesmo que perguntar, o que nos diz a nós e porque é que também diz a tanta gente que não sabe a língua? Para todos os que sentimos a gravidade da discussão que caricatura o mundo na dicotomia do globalismo versus localismo, esta questão é difícil e coloca-nos problemas. A todos.
Para quem se acha superiormente globalista, esta vitória de uma canção em português pode saudar a melodia, mas desvaloriza o significado, que os outros não entendem. O que conduz a uma visão perigosa e simplista: assim sendo, o português seria um mimo para turistas, que se visitaria como a Torre de Belém. Para os que se acham superiormente nacionalistas, o perigo é o contrário, desprezar a capacidade de comunicação da canção. Mas aí é que está o fracasso desse globalismo que é arrogante e do nacionalismo que é ignorante, é que a canção vale por ser em português e por ser universal. Não há portanto nenhuma oposição, a cultura estabelece essa ponte, mas só se «não for fogo de artifício».
Assim, viver a nossa língua não convida a estreitamentos nacionalistas, nem a patriotismos declarativos (posso preferir Guimarães Rosa a Agustina, ou Dostoievski a Camilo, não posso?). A nossa língua, que é a base da nossa comunicação na nossa comunidade e portanto a gramática da nossa democracia, é a nossa forma de viver no mundo, mesmo quando o compreendemos noutras línguas (e Salvador Sobral canta em inglês, o que não quis foi fazê-lo na Eurovisão). É por isso que um internacionalista deve aplaudir esta vitória e reconhecer nela uma voz comum. Cantar em português num festival europeu e nos dias de hoje é uma atitude corajosa.
in jornal Público do dia 19 de maio de 2017.