Crónica publicada no jornal i de 28/10/2011 sobre o que está a acontecer ao verbo acontecer nos jornais portugueses.
Acontece cada uma! Não, esta crónica não é sobre o programa do saudoso Carlos Pinto Coelho. É sobre a má utilização do verbo “acontecer”. Escreveu um dos “jornais de referência”, há dias, a propósito de progressos verificados na pesquisa de uma vacina contra a malária: «A RTS,S – é este o nome do produto – está na fase III dos ensaios clínicos que estão a acontecer em sete países africanos…».
Acontecer é «suceder de repente», e dá sempre ao falante a ideia de algo inesperado, desconhecido, imponderável. Ora, como é óbvio, os resultados de uma pesquisa científica têm muito de desconhecido, inesperado e imponderável. Mas a pesquisa em si não “acontece” – ela é planeada, provocada, desencadeada, controlada, medida, verificada, repetida. Por isso os ensaios científicos não acontecem. Decorrem, realizam-se, efetuam-se.
Quando utilizado no sentido de «existir», «haver», «realizar-se» (e até «decorrer») o verbo acontecer pode ser facilmente substituído – com muita propriedade – por outras expressões. «A recessão já acontece» pode ser substituída por «A recessão já chegou» ou «A recessão já cá está», ou ainda «A recessão já existe» (já reparou o leitor que verbo existir deixou de existir nos jornais portugueses, tendo sido substituído por «ser uma realidade»?).
Aconteça o que acontecer, o mais provável é que os jornais continuem a fazer e a acontecer com a língua portuguesa. Bastaria que os jornalistas conhecessem uma lindíssima canção brasileira que diz «O amor acontece na vida/ estavas desprevenida/ e por acaso eu também…». Pois é verdade. O amor acontece. Mas as experiências científicas são feitas. Eis toda a diferença. Está escrito. Vem na letra da canção.
In jornal i, de 28 de outubro de 2011, na crónica semanal do autor, Ponto do i, que assinala alguns erros da escrita jornalística, em Portugal