«(…) A rasquice de Bolsonaro é que os seus pecados veniais, em si próprios perdoáveis, marcam sua função política. (…)»
Marcelo Rebelo de Sousa, representante dos portugueses e de Portugal, esteve a comemorar o dia dos 200 anos de independência do Brasil, em Brasília, exatamente onde devia estar – no palanque oficial. A mais alta autoridade brasileira, o Presidente brasileiro, tinha-o convidado para lá estar.
Mas até digo mais, mesmo sem convite, o Presidente português podia ter subido ao palanque. Diziam-lhe: «Sem convite, não entra.» E ele respondia, firme como a voz da razão: «Desculpem, mas estou aqui porque a Independência do Brasil é também minha, já que represento um povo que herdou a glória de também ter feito a independência do Brasil.»
O porteiro talvez insistisse: «Não entra, não!» E Marcelo responderia: «Entrar, já entrei! No dia em que um meu antecessor, nascido no Palácio Queluz, a dez minutos de voo de pássaro do palácio onde moro, proclamou o que aqui, hoje, se comemora.»
E, com a dignidade dos apeados e carregado de razão, Marcelo sublinharia o protesto. Podia ficar à porta do palanque, mas lá dentro de direito e alma. A honra, quase sempre, não é ter uma estátua – é que se pergunte: porque não a tens?
Mas isso, afinal, acabou por não ser preciso.
O Presidente do Brasil, como era sua obrigação, convidou o Presidente de Portugal e, como era obrigação deste, Marcelo aceitou o convite. Pôs um sorriso de tipo educado, e calou-se como lhe mandava a função.
No palanque, Bolsonaro fez um comício ranhoso, partidário e antidemocrático.
Mais tarde, quando os jornalistas lhe estenderam os microfones, Marcelo explicou-se com o essencial: estava onde devia estar. Falou bem, e o suficiente. Porque a questão da grande comemoração, transformada em triste, foi outra: mereceria Jair Bolsonaro a honra de protagonizar tamanha data?
Não.
Como o próprio Bolsonaro o demonstrou, não merecia. E não, nem foi porque ele, a meio da cerimónia, se pôs a vangloriar um seu putativo dote: «Imbroxável! Imbroxável! Imbroxável!» Gritou-o à multidão, intervalando com olhares à esposa, como a pedir que ela confirmasse. Ela esquivou-se, por pudor ou por dever com a verdade.
Broxar, diz o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, é o que faz, ou melhor, não faz, o indivíduo sexualmente impotente. Alusão ao pincel, à broxa, que pinta leve, só unta, não deixa marca em profundidade.
A imagem tem algum sentido, mas é grosseira. Enxotar de si a suspeita, gritando-o – e por três vezes! – é próprio de um velhadas fraldisqueiro, gabarolas no bar, mas pouco confiante de si na cama.
Apesar de tudo, a grosseria não foi o grave da jornada. Mal comparado com o fraldisqueiro, Churchill era um bêbado, o que é também um pecadilho. A vantagem do inglês, porém, é que a garrafa de uísque virada cada dia, não o emperrava na política, iluminava-o nos magníficos discursos, com voos que nenhum sóbrio se pode permitir.
E aí não há perdão possível. Fazer do dia nacional, numa data redonda de dois zeros, de um país com uma história gloriosa (desde logo, esse 1822 libertador, em que o colonialismo foi derrotado olhando para a frente), do maior representante de uma língua bela e comovente (aprendo todo os dias com o meu camarada de redação, o pernambucano Álvaro Filho, 30 anos mais novo), com sábios que ensinaram o mundo (o embaixador brasileiro Souza Dantas, na Paris Ocupada, 1940), e uma convivência que iluminou outros povos (a misturada seleção brasileira de futebol, em 1958), país do jeito manso que é só seu… – enfim, fazer dessa simbiose um ato, no palanque de Brasília, em que o Presidente raptou a democracia e instigou ao complô militar é uma estupidez.
E não há pior pecado político que a estupidez.
A data que se comemorava, 1822, é grandiosa, mas está também associada à estupidez. Pedro I (nosso Pedro IV), filho do rei português, proclamando a independência e ao tornar-se o primeiro imperador do novo país, foi civilizado, inteligente e na esteira boa da História.
Boa, porque também a havia má: a da sua mãe, Carlota Joaquina.
Filha primogénita do rei de Espanha, ela casou-se com o herdeiro do trono português D. João VI. Os casamentos de príncipes eram acordos políticos, mas Carlota Joaquina nunca entendeu onde estava. Passou a vida a conspirar pelos seus direitos em Espanha e, tendo a sorte de viajar com a família real portuguesa para o Novo Mundo, num episódio político único da História Universal, não lhe percebeu o sentido.
O filho criou um país novo. Ela conspirou, a ver se lhe calhava alguma colónia espanhola por indigitação divina. Népias, voltou amargurada para a Europa, sacudindo as chinelas, porque, disse ela, «do Brasil, nem poeira…»
Estúpida, ignorante. Carlota Joaquina não entendeu que a política não é para a chinela (nem para conversa de tasca), faz-se compreendendo, conciliando, discutindo, comprometendo-se.
Dito isso, não quer dizer que a política se faça só entre os poderosos e nos gabinetes. O povo é essencial para se ouvir, sobretudo quando está indignado.
Eu, por exemplo, estou pessoalmente indignado por ter visto um Presidente que é o meu, insultado por um vagabundo, apesar de patrão do palanque. Marcelo, já eu o disse, reagiu bem, amarrando na cara um sorriso de quem estava onde tinha direito a estar.
Mas eu sou neto de uma mulher de Braga, que sabia mandar abaixo quem merecia sê-lo, e frequento sempre com gosto auditivo os mercados de Matosinhos e do Bolhão. Não sou obrigado, por razões de Estado, a levar insultos para casa.
Por isso, mas com a precaução de amaciar um pouco o falar rude das nossas compatriotas, sirvo-me de uma suave marchinha da Família Passos, de Curitiba, cujas palavras finais subscrevo.
Nota – Agradeço à conta de Twitter de Pedro Goulão @ppgoulao, que me revelou as vozes da Família Passos.
Cf. O que é imbroxável? Coro puxado por Bolsonaro levanta discussão sobre disfunção erétil + Imbrochável ou imbroxável? Entenda o significado da fala de Bolsonaro + Pequena Enciclopédia do Bolsonarismo
Crónica do jornalista Ferreira Fernandes, transcrita, com a devida vénia, do jornal digital Mensagem de Lisboa, com a data de 8 de setembro de 2022.