D. João I e a independência do Português - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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D. João I e a independência do Português
D. João I e a independência do Português
O "ar de família" com o castelhano e... nada mais

«(...) O biscaínho, catalão, galego, aragonês, castelhanoportuguês e outras mais, foram, e são ainda alguns, distintos idiomas: porém só os dois últimos tiveram literatura própria e perfeita, linguagem comum e científica, tudo enfim quanto constitui e caracteriza (se é lícita a expressão) a independência de uma língua. (...)»

 

A língua e a poesia portuguesa (bem como as outras todas) nasceram gémeas, e se criaram ao mesmo tempo. Erro é comum, e geral mesmo entre nacionais, pela maior parte pouco versados em nossas coisas, o pensar que a língua portuguesa é um dialecto da castelhana, ou espanhola, segundo hoje inexactamente se diz.

Ninguém ignora hoje que o provençal foi a primeira que entre as línguas modernas se cultivou, mas que por sua breve dura não chegou nunca à perfeição. Das nações da Espanha, as mais vizinhas àquele crepúsculo de civilização primeiro melhoraram a sua linguagem; mas também lhes coube igual sorte: nunca de todo se puliram. O castelhano e o português, que mais tarde se cultivaram, permaneceram pelo sabido motivo da conservação da independência nacional, e vieram a completo estado de perfeição e carácter cabal de línguas cultas e civilizadas. O biscaínho, catalão, galego, aragonês, castelhanoportuguês e outras mais, foram, e são ainda alguns, distintos idiomas: porém só os dois últimos tiveram literatura própria e perfeita, linguagem comum e científica, tudo enfim quanto constitui e caracteriza (se é lícita a expressão) a independência de uma língua.

Grande semelhança há entre o português e o castelhano. Nem podia ser menos, quando suas capitais origens são as mesmas e comuns; porém tão parecidas como são, pelas raízes de derivação, no modo, no sistema dessas mesmas derivações, na combinação e amálgama de idênticas substâncias e princípios, se vê todavia que diversos agentes entraram e mui variado foi o resultado que a cada uma proveio. Filhas dos mesmos pais, diversamente educadas, distintas feições tiveram  –  [por exemplo,] vário génio, porte e ademan; há contudo nas feições de ambas aquele AR DE FAMÍLIA que à primeira vista se colhe.

Este ar de família enganou os estrangeiros, que, sem mais profundar, decidiram logo que o português não era língua própria. Esse achaque de decidir afoitamente de tudo é velho; sobretudo entre Franceses, que são o povo do mundo entre o qual (por filáucia, decerto) menos conhecimento há das alheias coisas.

Sem dúvida é que a língua portuguesa começou com seus trovadores, únicos, no meio do estrépido de armas, que algum tal qual cultivo lhe podiam dar; e provável é que assim fosse com pouco melhoramento até os tempos de el-rei D. Dinis, que no remanso da paz do seu reinado protegeu e animou as letras, que ele próprio cultivou também.

D. João I, o eleito do povo e o mais nacional de todos os nossos reis, deu ao idioma pátrio valente impulso, mandando usar dele em todos os actos e instrumentos públicos, que até então se faziam em latim. Foi esta lei carta de alforria e de cidade para a língua, que até ali vivera escrava da dominação latina, a qual sobrevivera não só ao Império Romano, mas a tantas conquistas e reconquistas de tão desvairados povos.

Aqui se deve pôr a data da verdadeira aurora das letras em Portugal, que, por singular fenómeno, pouco visto entre outros povos, raiou ao mesmo tempo com a das ciências; por maneira que, quando o romântico alaúde de nossas musas começava a dar mais afinados sons, e a subir mais alto que o até ali conhecido, as ciências e as artes cresciam a ponto de espantar a Europa, mudar a face do mundo e alterar o sistema do universo.

Desde então até à morte de el-rei D. Manuel tudo foi crescer em Portugal: artes, ciências, comércio, riqueza, virtudes, espírito nacional... (...)

 

Cf.  Garrett, Deus e o verbo «agalegar»

Fonte

Extrato transcrito da antologia Paladinos da Linguagem, 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921.

Sobre o autor

Almeida Garrett (Porto, 1799 - Lisboa, 1854), partiu em 1809 para os Açores aquando da invasão francesa. Em 1816, matriculou-se no curso de Direito em Coimbra e participou na revolução liberal de 1820. Após a Vilafrancada, refugiou-se em Inglaterra tomando contato com a literatura romântica (Byron, Shakespeare e Walter Scott). Em 1824 e 1826, publicou em Paris Camões e Dona Branca, os primeiros poemas do Romantismo português. Em 1826, regressou a Portugal onde se dedicou ao jornalismo. Voltou a exilar-se em 1828 em Inglaterra e foi nomeado cônsul-geral em Bruxelas. Após este período, regressou a Portugal onde se destacou na política e onde dirigiu o Teatro Nacional. Da sua obra, destacam-se: Lucrécia, de 1819; Romanceiro e Cancioneiro Geral, vol. I, de 1843; Frei Luís de Sousa, de 1843; Viagens na Minha Terra, de 1946; Romanceiro e Cancioneiro Geral, vol. II e III, de 1851, e Folhas Caídas, de 1853.