A localidade onde Camilo Castelo Branco viveu os seus últimos anos tem o nome de São Miguel de Seide e situa-se em Vila Nova de Famalicão, no distrito de Braga. O uso impôs Seide, e é assim que na página da casa-museu do escritor se escreve o topónimo. Haveria alguma razão para se grafar de outra maneira?
O filólogo Rebelo Gonçalves (1907-1982), no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), é bastante direto quanto a escrever Ceide, com c, em São Miguel de Ceide, observando que é «inexacta a grafia Seide, largamente vulgarizada por factos da vida e das obras de Camilo Castelo Branco». Seguindo este autor, já se recomendou a forma Ceide no Ciberdúvidas, expondo a razões para grafar a letra c.
A justificação é histórica, como histórica é também a grafia de c antes de e ou i, nuns casos, e de s, antes das mesmas vogais. Em certas palavras de origem árabe, a letra geralmente adotada é c antes de e ou i. Este preceito já se encontrava expresso no Formulário de 1911, onde se diz assim (mantém-se a ortografia original; sublinhado meu):
«O emprêgo acertado das letras ce, ci, alternando com (s)se, (s)si, ou no interior do vocábulo o de ç, alternando com ss, depende da origem dêsses vocábulos e do valor que as ditas letras indicavam, quando a pronunciação delas diferia, como ainda hoje difere dialectalmente em várias regiões do norte de Portugal. [...]. Como regra geral, ce, ci, -ç- correspondem a ce, ci, ti latinos, a ce, ci, za, zo, zu do castelhano actual, a ss arábicos, ou pertencem a vocábulos de origem americana indígena, transcritos pelos autores peninsulares.»
O preceito manteve-se até hoje e explica porque se escrevem com c palavras do léxico comum de origem árabe como acepipe, do árabe az-zebīb, «passa de uva», acicate, de ár. aṣ-ṣikkāt, plural de aṣ-ṣikka, «coice, pontapé», e açoteia, de as-suṭeyḥa diminutivo de de saṭaḥa, «terraço» (Dicionário Houaiss). Trata-se de palavras de transmissão medieval, tal como acontece com certos nomes próprios árabes, que se fixaram na toponímia portuguesa. É o que sucede com Ceide, que vem do antropónimo Zayd, conforme apontou o filólogo e arabista Pedro Cunha Serra1, que identificou vários lugares chamados Ceide ou Ceides na Galiza e no norte de Portugal. Este é um dos vestígios da onomástica árabe na região de Entre Douro e Minho, os quais se explicam sobretudo pela deslocação de moçárabes e talvez mesmo de muçulmanos para norte, num movimento que, no caso dos primeiros, terá tido motivação religiosa em momentos de menor tolerância.
Voltando ao tema da ortografia, diga-se que, contrariando o preceito acima citado, a verdade é que o s acabou por prevalecer em Seide, e hoje não serão poucos os que jurarão a pés juntos que sempre foi assim que se escreveu. Talvez tenham razão, na medida em que a capacidade da memória coletiva não recuará a tempos muito anteriores aos séculos XVII-XVIII, quando s e ss começam a grafar-se em lugar de c e ç.
1 Pedro Cunha Serra, Contribuiçāo topo-antroponímica para o estudo do povoamento do noroeste peninsular, Lisboa, Centros de Estudos Filológicos, 1967, pp. 32/33.