«(...) Não se trata de carregar o discurso com termos difíceis, trata-se de (re)descobrir e tentar semear ao meu redor o prazer de encontrar a palavra certa, a palavra que ressoa e vibra o mais possível os sentidos. (...)»
Quando converso com os alunos ou com os leitores sobre instrumentos fundamentais para o escritor, menciono sempre os dicionários de língua. Sei que alguns dos meus colegas de ofício dificilmente admitirão que os consultam, e nós podemos acreditar neles. Pela minha parte, acho-os indispensáveis e sou viciada em todos, desde os recursos disponíveis online até aos pesados volumes do Houaiss ou do dicionário da Academia das Ciências. Porém, quando escrevo em casa, no meu pequeno mundo, a experiência de procurar palavras atinge outro grau de sofisticação, porque tenho à minha disposição dois dicionários de sinónimos antigos e deliciosos, o Dicionário de Sinónimos da Língua Portuguesa (1940) de Manuel José Pereira, herança do Paulo e que eu praticamente anexei à minha mesa de trabalho, e o Diccionario de Synonymos (1899) de Henrique Brunswick, que pertenceu a uma prima do meu avô, depois ao meu avô e agora é meu.
Está comprovado que o vocabulário médio de um falante do português diminuiu drasticamente ao longo das últimas décadas. Temos cerca de 110 000 palavras dicionarizadas, sem falar nas locuções, e o português básico está reduzido a menos de 1000 vocábulos. E quase todos reconhecemos que isso é mau, embora nem sempre saibamos explicar porquê (provavelmente, faltam-nos as palavras). Pela minha parte, gosto de me expressar com palavras certas e variadas, nas aulas, na escrita, no quotidiano. Não se trata de carregar o discurso com termos difíceis, trata-se de (re)descobrir e tentar semear ao meu redor o prazer de encontrar a palavra certa, a palavra que ressoa e vibra o mais possível os sentidos que desejo exprimir. É suposto os escritores gostarem muito destas coisas.
Dos dois dicionários antigos que indiquei, prefiro o Diccionario de Synonymos, talvez porque o autor, em vez de simplesmente apresentar os vários termos integrados num contexto frásico, como sucede neste tipo de dicionários, tece saborosíssimas considerações acerca das (por vezes ínfimas) nuances de sentido que os separam. Por exemplo. Explica que temer» e recear são sinónimos, mas temer é crer na probabilidade de um mal qualquer, ao passo que recear é acreditar na possibilidade de um mal, sem que tenhamos grandes fundamentos para o nosso receio. Que o impalpável é absolutamente ténue, mas o intangível é absolutamente imaterial. Que o bonito é sempre alegre, ao passo que o lindo pode ser severo. Que um homem elegante, imagine-se, é bem diferente de um homem garboso, pois «A elegancia está no aspecto exterior, no modelado da figura, no bem feito do talhe e no gosto no vestir. O garbo consiste mais na virilidade aparente do porte e nas qualidades varonis e pundonorosas do individuo.» Enfim, já estão a imaginar. Sei que gostariam que continuasse e que vos explicasse, por exemplo, as diferenças entre alcouce, lupanar, prostíbulo e bordel, mas vou ser maligna (não malvada, nem perversa, note-se) e vou ficar por aqui.
Um último exemplo. Brunswick distingue grosseria de descortesia, explicando que a primeira provém da falta de educação e que a segunda é a falta deliberada de consideração em relação a alguém. E abalança-se a comentar: «A grosseria pode ser desculpável; a descortesia não.» Confesso que achei a distinção magnífica, e assim a ponho à vossa disposição, para quando quiserem rotular convenientemente certas atitudes à vossa volta.
* Título da responsabilidade editorial do Ciberdúvidas.
in blogue Escritores.online, de 23/06/2017, com o título "Palavras".