«Inicialmente, podemos olhar Memorial do Convento como um exercício retórico, como uma narrativa histórica, com personagens magníficas, ou não, mas à medida que o tempo passa por mim, vejo esse livro como O Livro, não só de José Saramago, mas da nova língua portuguesa. [...] um livro em que a língua se pensa a si mesma; um livro que habita a língua, não a história», afirma Paulo José Miranda em Palavras para José Saramago, um texto em que reflete sobre a relação do Prémio Nobel português com a língua.
Nos anos 80, num programa de TV em que se abordava a questão do acordo ortográfico, José Saramago disse: «Aprendi a escrever mãe com "e", depois veio uma reforma e tive de aprender a escrever com "i" no final, veio mais outra reforma e voltou a ser com "e" no final. E com essas mudanças, a mãe, posso garantir-vos, era sempre a mesma. E agora, se mudarem de novo, ela só não é mais a mesma porque já morreu.»
Esta relação com a língua, que é mais do que a soma das palavras ou das suas regras, visível em quase todos os seus textos (mas principalmente em Memorial do Convento), foi seguramente aquilo que mais me marcou em José Saramago. A língua precisa de seus sinais para se constituir como língua, mas os sinais são apenas sinais e não a língua, são as roupas e não a pessoa que as veste. Com esta posição, Saramago perguntava (nos fazia perguntar) onde estava a língua. O que é a língua? A palavra aponta coisas. Stone em inglês aponta o mesmo que pedra em português. E, de algum modo, a língua tem de manter a sua sinalética próxima de pedra para preservar a sua identidade. Mas muda assim tanto, se for pédra? A língua tem uma plasticidade enorme, uma plasticidade que a maioria das coisas não tem. E Saramago usou como poucos na nossa língua a sua plasticidade. Plasticidade que transportou para a sintaxe. Escrever sem pontuação não é um mero exercício retórico, mas um exercício de liberdade. Não de libertação da língua — que é tão livre quanto a sua plasticidade pode, tanto quanto as suas possibilidades —, é um exercício de libertação da mente, um exercício de ver de novo, de ver diferente, um exercício de não cegar para a sua própria língua.
Inicialmente, podemos olhar Memorial do Convento como um exercício retórico, como uma narrativa histórica, com personagens magníficas, ou não, mas à medida que o tempo passa por mim, vejo esse livro como O Livro, não só de José Saramago, mas da nova língua portuguesa. Um livro de libertação, um livro de fazer ver, porque não é impositiva a libertação. Memorial do Convento é um livro em que a língua se pensa a si mesma; um livro que habita a língua, não a história. A narrativa poderia ser outra, o contexto histórico também, o que não poderia nunca mudar era o uso da língua nesse livro, o exercício de libertação levado a cabo por Saramago ao longo das páginas.
A convenção das sinaléticas da língua não deve desviar a nossa atenção do principal da língua: o desvelar de nós e do mundo; que tanto mais intenso e profundo será quanto mais exercitarmos a língua. Podemos talvez não conseguir libertar o país, o povo, nós mesmos, mas podemos e devemos libertar a língua. Esta relação com a língua é, desde Memorial do Convento, saramaguiana.
in Palavras para José Saramago, Lisboa, Caminho, 2011