«(...) Os dicionários fazem parte de minha rotina diária. Consulto-os todos os dias, dezenas de vezes. (...)»
Quando foi a última vez que você abriu um dicionário e leu um verbete inteiro? O que você costuma fazer quando depara com palavras desconhecidas num texto que está lendo? Você já desistiu de alguma leitura apenas por causa das dificuldades lexicais? Que importância você dá à riqueza vocabular dos livros que lê?
Consulto dicionários desde muito cedo. Lembro-me da primeira vez em que percebi de maneira consciente seu poder emancipador. Na sexta série (atual sétimo ano) do ensino fundamental, terminei uma prova cedo demais e a professora me deu um texto para ler enquanto aguardava o sinal do intervalo. Como topei com uma palavra que ignorava, chamei a professora para perguntar-lhe o significado. Evidentemente, ela estava ocupada supervisionando os alunos que faziam prova e, por isso, foi até sua bolsa, sacou um dicionário e deixou-o em minha carteira.
Aqueles minutos marcaram minha vida para sempre. Talvez sem nem se dar conta, a professora apresentou-me uma poderosa ferramenta de emancipação intelectual. Com o dicionário em punho, eu não precisava temer textos compostos por palavras desconhecidas. Eu tinha ali, à minha disposição, uma ferramenta capaz de tornar o desconhecido conhecido, o ininteligível inteligível, e o impossível difícil – difícil, mas possível!
Os anos se passaram e me tornei revisor de textos e, mais tarde, tradutor. Os dicionários fazem parte de minha rotina diária. Consulto-os todos os dias, dezenas de vezes. Para conferir a ortografia, para consultar uma regência, para descobrir se uma palavra já conhecida não está sendo empregada numa acepção incomum, para ver exemplos de uso literário dessas palavras. Além de tudo isso, os dicionários também nos ajudam a descobrir a etimologia das palavras, a separação silábica e a classe a que determinada palavra pertence.
Os benefícios são tantos que mal consigo acreditar que as pessoas abram mão de uma ferramenta tão poderosa e se entreguem tão facilmente a uma leitura adivinhada. Não nego que, com frequência, seja perfeitamente possível inferir o sentido de uma palavra com base no contexto; mas este é um recurso perigoso. Vejam o caso a seguir.
Aurélio Buarque de Holanda (sim, o homem do dicionário) manteve durante anos na revista Seleções, do Reader Digest, uma seção chamada "Enriqueça seu Vocabulário"*. Tratava-se de um passatempo em que se apresentava uma palavra seguida de quatro significados alternativos para que o leitor testasse seu conhecimento lexical.
Dois exemplos colhidos aleatoriamente devem bastar para mostrar como funcionava a brincadeira:
(Não deixem de fazer as suas apostas – e sem consultar nada. Só vou revelar a resposta de Aurélio nos comentários.)
Não usei a palavra adivinhada à toa. É isso que muitas pessoas fazem. É por isso também, aliás, que às vezes parece que duas pessoas leram textos diferentes. Cada uma atribuiu às palavras o sentido que lhes veio à cabeça, no melhor estilo Humpty Dumpty.
Consultar o dicionário não é uma chatice que interrompe o curso de sua leitura; é, na verdade, um indício de que você está lendo com a inteligência desperta a ponto de distinguir as coisas que você entende das que não entende, as coisas que você conhece das coisas que não conhece.
A mesma professora dizia também que o dicionário não é o pai dos burros; é a mãe dos inteligentes. É necessário ter alguma inteligência para procurar saciar a sede de saber. Quem tem sede, vá ao dicionário e sacie-se.
* Publicado em livro: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Enriqueça seu vocabulário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. O livro é prefaciado por Paulo Rónai, de quem recomendo vivamente que se leia o artigo “Uma geração sem palavras”, disponível aqui.
Apontamento do mural Língua e Tradição no Facebook em 21 de fevereiro de 2021.