«(...) Qual foi o dicionário que mandou que se esquecesse off side ou penalty, e se passasse a dizer «fora de jogo» ou «grande penalidade», qual foi? Pois bem: nenhum. Foram os falantes naturais da Língua Portuguesa que, naturalmente, dobraram a língua e arranjaram maneira de dizer em Português, naturalmente, aquilo que fazem naturalmente no seu dia-a-dia. (...)»
Ouvi dizer que já se encontra esgotado o novo Dicionário da Língua Portuguesa, mais conhecido como Dicionário da Academia [das Ciências de Lisboa]. Apetecia-me dizer «é obra!» – mas vou ficar-me por um prosaico «ainda bem!»: ou seja, não vou espantar-me por aí além pelo facto de uma obra que teve uma tiragem de muitos milhares de exemplares, vendidos a cerca de vinte e cinco mil escudos cada um, se ter esgotado no espaço de um mês ; embora seja caso raro em Portugal, o meu «ainda bem!» é mais do que justificado se conviermos em que este verdadeiro fenómeno de vendas no nosso meio livreiro se deverá exclusivamente ao facto de termos falta de um dicionário a sério de Português, e de existir em Portugal, como fica agora demonstrado, um mercado para este tipo de produtos. O que falta, normalmente, é capacidade de realizar e vontade de investir: recordemos que este Dicionário teve o seu início histórico em 1793, por empresa da Academia Real das Ciências (ficando-se então pelo famoso azurrar...), e que o seu único concorrente era – e é-o ainda hoje –, o Dicionário da Língua Portuguesa, de Moraes Silva, o velho Moraes que todos nós conhecemos e que começou a publicar-se em 1789.
Como cidadão português, sinto-me orgulhoso com esta façanha: finalmente, os portugueses demonstraram serem capazes de fazer e de comprar o dicionário da sua língua. No entanto, como filólogo, não deixo de me sentir apreensivo: é que este dicionário foi apresentado ao público, e por ele aceite e comprado, como contendo a norma lexical da Língua Portuguesa, um pouco à maneira de um «Tomai e calai: isto é o Português». Isso angustia-me.
Porque, fazer o dicionário de uma língua viva é como tirar o retrato a uma pessoa: apanha-se-lhe o que ela é naquele momento, mas também se lhe apanha uma ruga que se forma, um gesto suspenso, um brilho furtivo do olhar, um acto falhado... É como tirar um retrato que nunca poderá ser integral, porque seria sempre outro, se fosse outro o dia, outra a luz, outro o retratista : de cada vez, o retratado já seria outro. Ora, este dicionário pretende registar as palavras da língua portuguesa num momento passageiro da sua história, quando há palavras que falam do que hoje existe, outras que já morreram, outras que ainda mal se desenham : porque cada palavra tem a sua história, e cada uma entrou na história da língua a seu próprio tempo ; hoje há palavras que ontem nem sequer existiam, e por agora mal adivinhamos as que um dia virão. Por isso, esta tentativa de fixar no papel um processo dinâmico como é o da evolução do vocabulário de uma língua viva – é difícil, é por vezes incoerente, e há mesmo quem a ache insensata: afinal, este novo dicionário não é mais do que o retrato mais recente da mesma língua que um dia foi captada por Jerónimo Cardoso (1563), Moraes Silva (1789), ou Cândido de Figueiredo (1899). Entre cada um deles apenas mudaram os falantes, alguns acessórios do vocabulário, e, claro, os métodos dos lexicógrafos...
Entre cada um deles?! Pudera! O que não mudaram as palavras do Português em muito menos tempo, por exemplo entre a minha adolescência e os dias de hoje (que tenham passado uns trinta anos, se tanto)?!... Peguemos em alguns exemplos, peguemos numas palavras da linguagem do futebol, peguemos em relíquias como off side ou penalty: não eram estas palavras que há uns vinte ou trinta anos atrás, fosse no Estádio da Luz ou no campo Marquês de Jácome Correia, estivessem em jogo o Benfica ou a União Micaelense, toda a gente gritava quando acontecia aquilo a que hoje chamamos «fora de jogo» ou «grande penalidade»? Era, sim, senhores.
E agora pergunto eu: qual foi o dicionário que mandou que se esquecesse off side ou penalty, e se passasse a dizer «fora de jogo» ou «grande penalidade», qual foi? Pois bem: nenhum. Foram os falantes naturais da Língua Portuguesa que, naturalmente, dobraram a língua e arranjaram maneira de dizer em Português, naturalmente, aquilo que fazem naturalmente no seu dia-a-dia: como de resto já acontecera com os shake-hands, tão abundantes nos romances de Eça de Queiroz, que nós hoje mal descortinamos por detrás de uns banais «apertos de mão»...
Foram também os falantes naturais da Língua Portuguesa que arranjaram maneira de adaptar ao português, naturalmente, aquilo que pronunciam naturalmente no seu dia-a-dia: e não é preciso ir muito além de «futebol» ou de «camioneta» para nos entendermos; ou dos «alvarozes» (de over all) que os nossos emigrantes trouxeram da América.
O que me custa a entender é que um dicionário que levou mais de dois séculos para ser parido – não tenha resistido à tentação de, num fechar de olhos, apressadamente, como quem não quer a coisa, impor aos cidadãos formas de palavras que não sabemos se algum dia virão a ser aceites pelo organismo vivo que se chama Língua Portuguesa – a qual, se assim o entender, se marimbará para qualquer dicionário que lhe pretenda impor normas apressadas e não baseadas em usos consolidados.
(...)
Artigo do autor publicado no jornal Açoriano Oriental.