« (...) Quantas vezes você já leu um texto que lhe pareceu confuso e, mais tarde, ao ouvir outra pessoa lê-lo em voz alta, com o ritmo adequado, isso, apenas isso, bastou para que lhe parecesse claro o que outrora estava obscuro? (...)»
Alfabetizar é testemunhar um milagre. A criança aprende o nome e o desenho das letras; em seguida, os sons que aqueles sinais gráficos representam; por fim, é desafiada a combinar aqueles sons para formar palavras.
O menino arrisca: A-BA-CA-XI. Curioso, tenta mais uma vez: A-BA-CA-XI.
Com inocência infantil, pronuncia todas as sílabas com o mesmo peso, a mesma intensidade, a mesma duração. Quando já se sente seguro de que os sons são mesmo aqueles, arrisca acelerar um pouco. E aí se mostra uma cena linda!
Os olhos brilham, ele se levanta tomado de entusiasmo e brada: abacaXI, abacaXI!
O milagre da intelecção é simultâneo ao reconhecimento da sílaba tônica.
Lembre-se: fonemas são a mínima unidade sonora distintiva de significado. A posição da sílaba tônica, portanto, constitui uma oposição fonêmica, isto é, que implica mudança de sentido. Basta pensar em pares como ímã (o magneto) e imã (um clérigo muçulmano) ou manga (a fruta) e mangá (o quadrinho japonês) para perceber isso.
Muito bem. E se eu dissesse que, assim como a sílaba tônica de uma palavra é decisiva para que seu significado seja compreendido, também um texto precisa ser adequadamente pronunciado para que o possamos entender de fato? Veja: não é que precise ser pronunciado em voz audível, mas, sim, é necessário que aquele texto seja lido com certo ritmo e cadência para que possamos perceber suas nuanças.
Estou falando de prosódia.
Quantas vezes você já leu um texto que lhe pareceu confuso e, mais tarde, ao ouvir outra pessoa lê-lo em voz alta, com o ritmo adequado, isso, apenas isso, bastou para que lhe parecesse claro o que outrora estava obscuro? Quantas vezes, por exemplo, você recebeu uma mensagem de WhatsApp sem nenhum sinal de pontuação e, para compreendê-la, teve de imaginar aquelas palavras pronunciadas na voz da pessoa que lhe enviou, com as pausas nos devidos lugares, e então tudo fez sentido? Isso se deve à prosódia.
Cornélia Funke, autora da trilogia Mundo de Tinta (Coração de tinta, Sangue de Tinta e Morte de Tinta), criou uma imagem que não me canso de repetir. Em sua saga, há os «línguas encantadas», personagens que tornam vivas, aqui e agora, toda sorte de criaturas presentes nos livros que leem em voz alta.
Este é o poder da prosódia: um texto lido com a prosódia adequada se torna vivo. É necessário adquirir certo grau de fluência de leitura para que consigamos passar daquela leitura monótona e silabada – em que damos o mesmo peso a cada sílaba e nos enroscamos nos sinais de pontuação – para a leitura ritmada, em que conseguimos ler com o andamento devido, como quem toca a música que está na partitura.
Por isso, aliás, tanta gente tem dificuldade com a pontuação dos textos. A pontuação é o campo em que prosódia e sintaxe se combinam. O ponto de interrogação e de exclamação não indicam exatamente uma pausa. Indicam o modo como as palavras daquela frase devem ser lidas. A segmentação das frases e dos parágrafos também atendem a uma necessidade rítmica, acústica, sonora.
Para fazer o trânsito entre a língua escrita e a língua falada, não conheço exercício melhor que a leitura em voz alta. Uma leitura que atenta à mudança de voz conforme os turnos de fala das personagens. Uma leitura que pretende reproduzir o sentimento do texto. Uma leitura, enfim, que envolve a nossa atenção por inteiro, a tal ponto que nos tornamos participantes da história narrada.
Quando foi a última vez que você leu em voz alta para alguém?
Artigo publicado na página Língua e Tradição no Facebook em 22 de janeiro de 2021.