Montado num burro, Jesus entra em Jerusalém e, à medida que avança, as pessoas à sua volta estendem e depõem (em latim, o verbo «substernō, substernere») na via pública as suas capas. Esta narração, própria de Domingo de Ramos no calendário cristão, permite-nos avançar no nosso estudo da gramática latina:
«eunte autem illō, substernēbant uestimenta sua in uiā. et cum adpropinquāret iam ad descensum montis Olīuētī, coepērunt OMNĒS TVRBAE DISCENTIVM gaudentēs laudāre Deum uōce magnā»
A versão latina de Lucas (19:36-37) que a Vulgata nos dá a ler apresenta uma curiosidade em relação ao original grego, que por sua vez também levanta uma questão textual curiosa. Como vêem na expressão destacada em maiúsculas, o evangelista fala aqui em «todas as multidões de discípulos» (em latim «omnēs turbae discentium»; note-se que «discentium» é o genitivo do plural do particípio presente de «discō, discere» = «aprender»).
«Todas as turbas de discípulos» parece um pouco hiperbólico, pois sugere muitas multidões constituídas por discípulos de Jesus. Seriam assim tantas? Na verdade, o texto grego dá-nos a ler a palavra para «multidão» no singular: onde em latim lemos «omnēs turbae», em grego lemos «a multidão dos discípulos» («tó plēthos tōn mathētōn», τὸ πλῆθος τῶν μαθητῶν).
No entanto, há uma razão pela qual a Vulgata operou o milagre da multiplicação das multidões de discípulos: é que, nos manuscritos mais antigos de Lucas em grego, o verbo está no plural (ainda que o sujeito esteja no singular). Em latim lemos «coepērunt», indicativo perfeito do verbo «coepiō, coepere» ( = «começar»). Esta forma reflecte com precisão a forma verbal correspondente grega, pelo menos como ela surge nos manuscritos mais antigos (curiosamente, o maravilhoso manuscrito bilíngue grego/latim do Novo Testamento do final do século IV, o Codex Bezae actualmente em Cambridge, dá-nos a ler, em grego, «começou», em vez de «começaram»).
Leiamos agora de novo a passagem de Lucas em latim, focando a nossa atenção nas palavras que agora porei em maiúsculas:
«EVNTE autem ILLŌ, substernēbant uestimenta sua in uiā. et CVM ADPROPINQVĀRET ad descensum montis Olīuētī, coepērunt omnēs turbae discentium gaudentēs laudāre Deum uōce magnā».
«Pois enquanto ele avançava, estendiam as suas vestes na via. E quando chegou à descida do monte Oliveto, começaram todas as turbas de discípulos, regozijando-se, a louvar Deus em voz alta».
A primeira palavra, «eunte», é o ablativo do particípio presente do verbo «eō, īre» ( = «ir»). Este particípio é, no nominativo, «iēns», mas nos outros casos muda:
NOMINATIVO: iēns / euntēs
ACUSATIVO: euntem / euntēs
GENITIVO: euntis / euntium
DATIVO: euntī / euntibus
ABLATIVO: eunte / euntibus
Se acharem estranha esta declinação, estão em boa companhia: os próprios falantes de latim oscilavam nas formas desta declinação (e por isso formas como o genitivo «ientis» e o dativo/ablativo do plural «ientibus» estão documentadas epigraficamente).
O principal a reter é que se trata do particípio do verbo «ir»; e, na frase de Lucas que estamos a analisar, surge em ablativo: «eunte». Aliás, o que temos é «eunte... illō»: um particípio em ablativo com um pronome em ablativo.
Esta construção chama-se «ablativo absoluto» e é, juntamente com a oração infinitiva que vimos na lição anterior, uma das estruturas frásicas mais típicas do latim. Aliás, eu diria que as três estruturas frásicas mais típicas (e recorrentes) da sintaxe latina são:
1. a oração infinitiva (que vimos na lição anterior);
2. o ablativo absoluto (que estamos a ver na passagem de Lucas);
3. a oração de «cum» + conjuntivo imperfeito (que está também presente na nossa passagem de Lucas).
A constituição de um ablativo absoluto é tipicamente um particípio em ablativo e um pronome ou substantivo, também em ablativo. O ablativo absoluto mais canónico é aquele em que o sujeito do particípio é independente do sujeito do verbo principal, relativamente ao qual o ablativo absoluto funciona como expressão subordinada – tanto assim que, na tradução para português, optamos normalmente por transformar o ablativo absoluto numa oração temporal ou causal. Vejamos de novo a frase de Lucas seguida da tradução:
«EVNTE autem ILLŌ, substernēbant uestimenta sua in uiā. et CVM ADPROPINQVĀRET ad descensum montis Olīuētī, coepērunt omnēs turbae discentium gaudentēs laudāre Deum uōce magnā».
«Pois enquanto ele avançava, estendiam as suas vestes na via. E quando chegou à descida do monte Oliveto, começaram todas as turbas de discípulos, regozijando-se, a louvar Deus em voz alta».
Como vêem, traduzi «eunte... illō» por «enquanto ele avançava». E percebemos também aquilo que referi da independência do sujeito do ablativo absoluto em relação ao verbo principal: o sujeito do ablativo absoluto é Jesus; o sujeito de «substernēbant» são as pessoas que estendiam na via as suas vestes.
Agora reparem na oração «quando chegou...», em latim «cum adpropinquāret». Temos aqui «cum» (como conjunção: «quando») juntamente com o conjuntivo imperfeito do verbo «adpropinquō, adpropinquāre» («aproximar-se», «chegar perto»). Notarão muitas vezes daqui para a frente a grande frequência deste tipo de oração temporal em latim (que pode também surgir com conjuntivo mais-que-perfeito).
Agora, não sei se repararam: embora Lucas esteja a narrar os acontecimentos associados à celebração cristã do Domingo de Ramos, não menciona quaisquer ramos.
Comparemos os relatos dos outros evangelistas, mas primeiro confiramos este vocabulário:
«sternō, sternere, strāuī, strātum» = «estender»
«caedō, caedere» = «cortar»
«accipiō, accipere, accēpī, acceptum» = «tomar»
«prōcēdō, prōcedere, prōcessī, prōcessum» = «avançar»
obuiam + dativo = «ao encontro de»
Marcos (11:8): «multī autem uestimenta sua strāuērunt in uiā; aliī autem frondēs caedēbant dē arboribus et sternēbant in uiā».
Mateus (21:8): «plurima autem turba strāuērunt uestimenta sua in uiā; aliī autem caedēbant ramōs de arboribus et sternēbant in uiā».
João (12:13): «accepērunt ramōs palmārum et prōcessērunt obuiam eī».
Como se vê, a palavra «ramos» está presente em Mateus e João – mas não em Marcos, que fala apenas de «folhagens» (em latim «frondēs»). E só João fala em ramos de palmeira.
Quanto a Lucas, se ele pudesse prever a importância que o cristianismo posterior daria aos ramos, decerto não se teria esquecido de os mencionar. Mas Lucas, afinal de contas, é o evangelista que, ao narrar a paixão de Cristo, não só omite a flagelação de Jesus como a própria coroa de espinhos. A ausência dos ramos é algo de somenos...
Texto original publicado no Facebook Latim do zero - Página de Frederico Lourenço para a aprendizagem do Latim, no dia 5 de abril de 2020.