«Certas deturpações tornaram-se tão comuns que os dicionários até já as registam...»
Há algumas deturpações populares que são fáceis de perceber, embora com uma irreprimível vontade de rir quando as ouvimos na presença de quem as diz sem pestanejar… É o caso, por exemplo, de alguém que nos fala do seu colesterol, afirmando que tem «o "castrol" muito alto»… Ou referindo-se a ataques epiléticos, nos descreve os «ataques "epilétricos"» de um amigo…
Mas já não consigo descortinar por que razão se ouve muita gente a pronunciar a palavra vistoria com e: “vestoria”. Se algo foi visto por técnicos, temos, pois, uma vistoria… Como aqui se pergunta, porquê a insistência em “vestoriar”1?
Também não sei por que razão se ouve muita gente pronunciar o estrangeirismo chauffage2 de uma maneira esquisita: “sofage" / "sofagem”. Porque será que se troca o ch por s?... O mesmo já não acontece noutra palavra da mesma família francesa: chauffeur. Esta virou, em português, chofer…
Outro exemplo de deturpação popular: dizer-se «vivenda "germinada"» em vez de «vivenda geminada»3: geminada está relacionada com gémea e aplica-se quando nos referimos, por exemplo, a duas vivendas contíguas e iguais.
Quando eu era miúdo (anos 60), havia três estrangeirismos que toda a gente com instrução dizia e pronunciava «como devia ser»: chauffeur, sandwich/sanduíche e cake. Volvidos alguns anos e por influência popular, já toda a gente – ou quase toda – adotava os respetivos aportuguesamentos: chofer, sandes e queque4 (o bolo)…
Certas deturpações tornaram-se tão comuns que os dicionários até já as registam… Dois exemplos:
1. almorroidas em vez de hemorroidas: como o elemento hemo significa «sangue», esta deturpação deixa-nos com calafrios…
2. praia-mar em vez de preia-mar: o elemento preia significa «cheia» (do vocábulo arcaico português prea, do latim plena), e encontra-se no feminino porque mar, antigamente, era uma palavra feminina. Preia-mar significa, pois, «maré cheia, maré alta», sendo o seu antónimo baixa-mar («maré baixa, maré vazia»).
1 Cf. Ciberdúvidas.(13/01/2003) e "Vestoria", Língua à portuguesa (07/05/2007).
2 Cf. Ciberdúvidas (25/11/2011) e FLIP. Dúvidas Linguísticas (30/11/2005).
3 Cf. Ciberdúvidas (17/01/2003) e Em português corre(c)to (24/01/2018).
4 Cf. Wikipédia. [Já depois da publicação deste apontamento no Facebook, a consulta do Dicionário Houaiss levou a tomar conhecimento de que queque é palavra que já se encontra registada, pelo menos, desde a 1.ª edição do dicionário de Cândido de Figueiredo, portanto, desde 1899. Ora, sabendo da pressão do francês sobre o português, até na transmissão de palavras de línguas terceiras, é de assinalar que o Trésor de la Langue Française consigna o anglicismo cake associando-lhe as transcrições [kɛk], com e aberto, e [kek], com e fechado. Dada a semelhança ou identidade fonéticas entre queque e a primeira das pronúncias francesas de cake, não será descabido sugerir que queque não é, afinal, aportuguesamento direto por via popular, mas, sim, adaptação, talvez em ambiente burguês e afrancesado, de um anglicismo transmitido por via fonológica francesa.]
Apontamento de João Nogueira da Costa, publicado no mural deste autor no Facebook, em 8 de agosto de 2019.