Ou a palavra é o princípio e negação da eternidade ou o eterno só terá começado - sem ter sido concluído - com a palavra. A cosmogonia dos gestos, dos sons, dos símbolos - da palavra, como elemento da criatividade mais inicial, a palavra como princípio de se conhecer a existência. Como princípio de todos os princípios e descoberta da vida pelo conhecimento da morte.
Falar é sermos nós com os outros para se perceber o singular e entender-se também a si. É comunicar com sons convencionados por regras.
Quando já se inventa a escrita e se aprende a ler, toda a comunicação oral, de voz e som, o que nela se contém, parece reduzir-se ao silêncio dos símbolos e à possibilidade de o sujeito receptor das mensagens escritas, dispensar a voz do outro ou dos outros silenciadas pelos signos que dispensam sequer quase pensar os sons.
Estamos a falar de uma tão-somente mensagem escrita, com o objectivo de comunicar, o que se significa escrever como utilização para um determinado fim, chegada da mensagem ao destinatário.
Agora, o que nos trouxe aqui a este quê de prosa e estórias parece que é a outra escrita, aquela do escritor. A laboração sobre a utilização. A escrita não apenas a intermediar. De ferro-metal-matéria-fucionalidade passa a existir-se em prazer de se sentir e ser sentida ou, mais simplesmente, como um tocador, um músico, no quissanji1 ou na flauta. Ele exerce escrita sobre o próprio ser que é o quissanji1 ou a flauta. O tocador desadormece os sons. O quissanji1 ou a flauta deixam simplesmente a sua aparente estática finita de escala de sons. O tocador não recebe. O tocador tira sons. Inventa sons do som da flauta e, cada vez mais, percebe a infinitude do quissanji1 ou da flauta, que é a infinitude do imaginário do tocador sobre todas as infinitudes.
Assim, o escritor não tira só as palavras significadas, mas labora em cima do instrumento que é a linguagem. E o outro que vai ler onde o escritor se leu, descobre a descoberta que está no texto. Aí, há uma solidão invadida. Ficcionalmente invadida porque ninguém em solidão é sem os outros. Lê rodeado de cazumbis2. Personagens, multidões de vozes e cores, umas e outras que se percebem até por omissão no texto porque ficcionar também é este fingimento de faz de conta que não existe sem se imaginar o texto e sua leitura. E há uma solidão invadida com a força do silêncio dos signos, das palavras, das frases - que se podem reler, relendo falas e pensamentos, mais as cores, os odores, os ritmos, os sentimentos, podendo ser recebidos, na maneira como são no texto escrito, transformado e retransformado na solidão invadida pela escrita onde o silêncio se pode vestir-se de cumplicidade como se fosse música.
Mas antes foram as falas só faladas e as falas ficcionadas, falas de contar as estórias, de passar o testemunho de feitos antepassados em ficcionalidade. Tudo oral e ausente de escrita.
E uma língua chegada, língua trazida pelo invasor. Depois a imposição dessa língua. E a apropriação com a agramaticidade do oprimido, dos falantes da desestruturação da gramática trazida e seus enunciados.
A escrita chega, abruptamente, confrontando a oralidade. Não uma caminhada histórica da oralidade à escrita com a primaridade dos primeiros textos escritos ainda reproduzindo ou prolongando os textos orais. Assim os primeiros textos escritos inscrevem-se na decorrência da chegada do outro. Parece até que um princípio assim implica a desmemorização como se a história só aí tivesse começado. Porém a história já acontecia antes e na fala das línguas encontradas pelo outro.
Escrita de lei nos seus princípios, não poderia resistir-se ao novo “locus” e às transgressões que alimentassem novidade. Aqui, parafraseando Jean-Pierre Jeudy, nem sempre a palavra «nova acaba sendo sempre a palavra nova, podendo significar uma mudança que não passa dum sentido já morto.»
Mas o novo sentido da língua conquistada, quando se intenta a neologia como subversão, a mesma não tem o sentido da transgressão nativa do outro, realizada no terreno da língua, porque aqui a transgressão tem um sentido além a partir de uma natividade onde a língua adversa, imposta, depois de conquistada anda num vaivém de alquimia, de ferreiro e caçador de sons, palavras frases que possam desconjuntar para serem linguagem inculcada pela novidade da transformação do falado e falando-se em outra língua, para muitos já materna e transposta para outro quadro de estrutura e sistema.
E a escrita, também apropriada em novidade mas como se refalando noutra língua segunda mas como principal e tantas vezes por desmemorização genaracional da primeira. E os astros deste caos como um sentido de organização da infinitude. E organizar a infinute é o encantamento febril do xinguilar 3 a linguagem. Porque nunca se consegue acabar. Mas é mais de vida, melhor, porque desorganiza a finitude, plena de tristeza por se reconhecer só na morte da estrutura a fugir do fim e retomar princípio que é sempre a palavra.
Prosa. Estórias. Escritos. Ficção, narrativa e ficcionalidade. Vou ou não conseguir regressar à fala escrevendo? Vou ou não conseguir o fingimento e a ilusão? O texto como um tchinganji 4 de estiga 5 . Podendo eu fugir do texto, imaginá-lo como existência dele, própria e entregá-lo (ou libertar-me dos espíritos?) para que outros o sintam como um fingimento aceite pelo prazer, o gozo de sentir a ficcionalidade e até simular uma luta contra o texto com um bocado de fogo sem Prometeu. Como nos textos ditos sagrados, plenos de ficção por serviço da palavra.
Se aquilo que se contava antigamente se contava noutras línguas daqui, não se saltou dessas línguas para a escrita e a escrita só começou com esta língua, posso ou não posso escrever como se estivesse a recuperar o gesto de contar oral? Da escrita à fala. Isto é, posso conseguir iludir de prazer o leitor de maneira que ele se instale na estrutura do meu texto com a sensação de que não está a ler mas alguém lhe está a contar uma estória?
No chegar do outro não se falava esta língua aqui. A língua foi trazida. Daí a sua boa óbvia transgressão. O invadido sentiu a língua do outra como invasora. Mas transgredir é possuir a língua. Como mulher amada. Com e muito com ou sem e muito sem as regras de uma gramática que sempre se afigurou finita aos olhos do invadido sedento de norma mas pelo interdito.
Só que nesta ludicidade da fala e da escrita ou da escrita e da fala, nesse desaperfeiçoamento aparente, vamos aperfeiçoando a vida da língua, das falas e das escritas. Também, quem é invadido para ser desaperfeiçoado tem o direito a se desinvadir para aperfeiçoar.
E isto dizendo que na hora em que desestabelecemos a língua, afinal, antes, parece, por ouvido de som e ritmo nas vozes, se antecipávamos no genoma, na clonagaem, na globalização, tudo, precavidamente, na reinvenção da palavra escrita por regresso a falas novas que nunca teriam existido se outras também nunca tivessem sido transgredidas.
E o que é mentira? A verdade ou o sonho? E a espuma do mar? Já existia antes de existirem essas palavras? E essas palavras são mentira se for verdade ou só são uma verdade inteira se forem sonho?
Na maneira como comecei esta fala: ou a palavra é o princípio e negação da eternidade ou o eterno só terá começado - sem ter sido concluído - com a palavra. E, se tivesse sido concluído, também não existia mais o sentido da palavra.
1 Quissanji – Instrumento musical popular angolano, que produz o som de areia dentro de uma lata, cuja origem é precisamente essa.
2 Cazumbis - Em todas as línguas de Angola significa «espírito». Sendo que os da cidade dizem Cazumbis – espíritos ou fantasma no plural. Zumbi: «Fantasmas, espíritos». Cazumbi: «Fantasma, espírito», no singular. (Em quimbundo, o “ca” faz o singular).
3 Xinguilar – Entrar em transe, fazer tremer o corpo, em especial os ombros, durante um ritual. Tremer o corpo quando se recebe um espírito.
4 Tchinganji – Figura (mascarado) do imaginário etno-cultural dos lunda-quiocos, com presença em danças rituais;
5 Estiga (r) – Brincadeira em que se goza com o interlocutor com uma espécie de adivinhas ou colocando-o no absurdo e ridículo; gozar ou troça com/de alguém