«Há várias palavras cuja utilização tem servido para essa radicalização: liberdade, socialismo, bloco central, clarificação.»
A política em democracia sempre esteve muito dependente de palavras. A crise actual da democracia passa também por um empobrecimento da comunicação, reduzida no léxico, cheia de metáforas mortas, condicionada por mecanismos que diminuem significativamente a capacidade de transmitir argumentos a favor de soundbites e frases assassinas ou que pretendem ser virais. Numa época de radicalização, este empobrecimento da comunicação, ou melhor do sentido racional da comunicação, é um elemento fundamental para o domínio do Pathos sobre o Logos, que acompanha a tendência para subir o volume do discurso, para valorizar os decibéis. Este processo faz-se num contínuo entre o discurso político, o das “redes sociais” e o da comunicação social, tendo como resultado que cada um fala para os seus e não ouve os outros.
Este processo está em pleno curso em Portugal, acentuado pelas fracturas profundas dentro do PSD e do CDS e pelo confronto entre uma direita radical e uma esquerda em perda, em que a moderação do centro é varrida pela arregimentação. Não é que a democracia não comporte a conflitualidade política e que esta não possa ser dura, o que se espera é que esta conflitualidade não perca a capacidade de “falar” connosco, em vez de apenas nos berrar palavras de ordem e, acima de tudo, querer colocar-nos “na ordem”. A radicalização não é a insubmissão, nem a justa revolta, é outra coisa: é a substituição do indivíduo e da sua liberdade pela ordem de marcha. É aqui que as palavras têm o seu papel perverso.
Vivemos há anos sob a ditadura de algumas expressões que fazem estragos na política, porque de há muito o seu significado original se perdeu ou deixou de ter sentido. Há várias palavras cuja utilização tem servido para essa radicalização, uma das quais é liberdade, usada no estrito senso do liberalismo económico, sempre acompanhado por um forte autoritarismo político e social, ou a palavra socialismo, utilizado como uma classificação universal para designar desde o socialismo propriamente dito – uma raridade nos dias de hoje – ao intervencionismo do Estado. Este pode nada ter a ver com o socialismo, tendo antes a ver com a existência de um sector público na economia, ou sistemas nacionais de saúde ou educação, providência e leis laborais. Muitas destas coisas tanto podem ser socialistas como democratas-cristãs, embora historicamente a sua construção deva muito a uma tradição moderada do socialismo, a social-democracia.
Outra dessas palavras é o bloco central, o anátema sobre qualquer entendimento entre as alas do centro-esquerda e a esquerda não comunista. A experiência do bloco central em Portugal fez-se em circunstâncias que nada têm a ver com a actualidade. O efeito perverso do bloco central, o acordo de governo entre PS e PSD, foi a desertificação política que gerava um “centro” com um peso enorme na representação política. Hoje, não só os dois partidos estão muito fragilizados, como o aparecimento de partidos populistas e a radicalização da direita alteraram a geografia política.
Aquilo a que alguns no PSD chamam clarificação, com a habitual referência enganadora a Sá Carneiro, é uma coisa muito diferente, é a colocação do PSD à cabeça de uma “frente de direita” versus uma frente de esquerda, exactamente o curso político que Sá Carneiro sempre recusou na teoria e na prática, de forma aliás muito explícita. Lembrarei mais uma vez que Sá Carneiro se preocupou em que, na construção da AD, houvesse uma componente de centro-esquerda, neste caso os Reformadores. Também o PPM com que se aliou nada tem a ver com o PPM actual, a não ser o monárquico no título. Já para não dizer que o CDS também era muito diferente do actual CDS, com Amaro da Costa, que foi o principal interlocutor de Sá Carneiro, com uma formação democrata-cristã.
Em momento de radicalização, as palavras são perfeitas para diminuir as opções e reduzir tudo a dois lados combatentes. Do mesmo modo, o simplismo é um maná para a comunicação social, que se sente sempre muito à vontade quando beneficia do Pathos dos exércitos perfilados. Mas a substância da democracia perde quando a ecologia do combate, o desespero da impotência, a fragilidade do cansaço, se misturam para criar este caldo de cultura.
A história pode não nos ensinar nada e normalmente não nos ensina nada, mas o que se pode dizer é que sempre que isto aconteceu, o resultado foi mau para a democracia.
Artigo de opinião da edição do jornal Público de 23 de outubro de 2021 (mantém-se a ortografia de 1945, que é a seguida no texto original).