«(...) é preciso conhecer a língua para bem subvertê-la; o linde entre o gracejo linguístico e a zombaria é da espessura de um átomo. (...)»
Um dos tópicos mais estudados por quem busca harmonia textual é o paralelismo, que consiste basicamente na manutenção de simetria estrutural e semântica. Sintaticamente, devem-se evitar construções como «Não é necessário escolher entre o amor e trabalhar muito», uma vez que se estariam oferecendo duas opções de termos pertencentes a classes gramaticais diferentes: um substantivo e um verbo. Assim, em prol da estilística, indicam-se dois verbos (amar e trabalhar) ou dois substantivos (amor e trabalho).
Semanticamente, também se deve observar tal linearidade, sob pena de incorrer em esparrelas como «A força do Estado é maior que o cidadão comum». Compara-se, desse modo, o incomparável: «força» e «cidadão». Adequado, portanto, seria dizer «A força do Estado é maior que a do cidadão comum», ocorrendo assim o confronto da força de um polo com a de outro.
Especialmente no que diz respeito a esse último, é comum que justamente de sua ruptura surjam soluções estéticas originais capazes de dominar e fritar a mente mais incauta. Fazer dessa subversão um mecanismo de encantamento é desafio cumprido por poucos, uma vez que o ato requer excelente domínio dos mecanismos linguísticos relativos a paralelismo. Em outras palavras, é preciso conhecer a língua para bem subvertê-la; o linde entre o gracejo linguístico e a zombaria é da espessura de um átomo.
Bentinho, nosso Dom Casmurro, conhecia um rapaz do bairro «de vista e de chapéu». Ora, onde já se viu conhecer de vista e de chapéu! que combinação estranha! Estranha, mas jamais insossa, assim como o amor de Marcela, cortesã de luxo que amou Brás Cubas «durante quinze meses e onze contos de réis». O último caso tipografou-se para sempre nos livros de Português como exemplo de ironia e ruptura de paralelismo.
Drummond – que adorava as cifras e os códigos «sob a pele das palavras» – disse, quando em momento de irresignação pela demora da justiça, que o tempo era ainda «de fezes, maus poemas, alucinações e espera». O mesmo autor, ainda descrente de quase tudo, percebeu em outro poema que o tempo – máquina feroz – passa, mas deixa marcas de sua seiva impiedosa: «[...] de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.»
O tempo de Drummond está se lixando se sua seiva sabe ou não o que é paralelismo semântico. A ponte bombardeada corre nas mesmas veias que o maço vazio de cigarros, assim como fezes e alucinações caminham siamesamente juntas. E Drummond se regozija porque não controla o tempo, mas controla a língua, que escraviza o tempo no papel.
Também Nelson Rodrigues chutou o paralelismo de todas as formas que pôde. Em um de seus lampejos, disse que «Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível». Sem dar a mínima, entregou a um adjetivo e a um verbo o mesmo poder: o de desnudar aquilo que para ele seria o maniqueísta comportamento feminino. E ficamos nós mulheres imparalelas e incompreendidas, semântica e sintaticamente.
O tempo passou e Drummond se foi, mas não se foi. Nem Nelson, nem Machado, esses grandes aparentes subversivos que à nossa língua continuam servindo com sua meticulosa rebeldia.
Publicação do dia 10 de julho de 2020 na página de Facebook de Língua e Tradição.