«(...) [A] Literatura é impureza, tantos são os detritos que para ela confluem, e a Língua, o fluido da qual a Literatura se serve, é por definição um sistema impuro. A Língua reformula-se permanentemente, em cada dia esquece palavras, cria palavras, transforma-se em contacto com novos sistemas, agrega elementos dos novos sistemas. É um processo em construção.»
[Artigo da escritora portuguesa Lídia Jorge, publicado no Jornal de Letras em 11/05/2016.]
Pouco sei dizer sobre a língua portuguesa. Não a estudo, não reflito demoradamente sobre ela, gosto mais de a descobrir nas suas aventuras particulares do que perscrutá-la enquanto sistema, prefiro utilizá-la até à exaustação, atravessá-la e absorvê-la, e a ela acomodar-me, devolvendo-a como posso no âmbito do concreto e no presente, a imaginá-la como será no futuro, estudiosa e abstratamente. Usá-la, vivê-la, contorcê-la, fazer dela um vestido tão justo ao ser que dela se possa dizer que em si mesma me transformei, menos por obediência do que por querer, isso sim, eu faço e cumpro-o por prazer. E porque assim é, o enunciado que nos foi proposto deixa-me tranquila. Os ociosos do pensamento sobre a língua, como eu, pelo simples uso que dela fazem, não deixarão de participar no seu futuro, contribuindo, na pequeníssima escala que a cada um assiste, para a sua diversidade, pluralidade e, porventura também, para a sua inovação, legando uma frase, breve que seja, ao lume brando da emotividade coletiva. Essa é a experiência da escrita. Pois o que são as literaturas mais do que os lugares comovidos das línguas? As regiões da linguagem onde se cruzam as potencialidades da hipérbole com os diversos graus da emoção? Parece-me justo lembrar esse aspeto, neste momento, quando nós, os quatro escritores convocados, falamos a partir de espaços geográficos diferentes, ainda que usando a mesma língua.
Não quero, porém, deixar-me envolver na questão da diversidade. Ainda assim direi que a língua, quando tornada personagem, sempre convoca uma celebração. Em princípio, uma celebração territorial. Uma língua, neste caso, a portuguesa, para além da sua gramática geral, denuncia a terra onde é falada e escrita, denuncia a idade de quem a fala, o seu percurso, a sua nação, o seu século, os parceiros com os quais se cruza, aos quais cede e aos quais resiste. Grande parte de uma língua é pura terra. Por isso as línguas, e as suas variantes, são sempre objeto de nacionalismos. As suas articulações poéticas ainda mais. Por alguma razão Ian Mcwean, a propósito das tensões entre as várias culturas que se expressam em língua inglesa, falava recentemente do pendor conservador das literaturas, não para o combater, apenas para o reconhecer como uma tendência e uma natureza. Também penso que as línguas, por via dessa força centrípeta que o território impregna, estão marcadas pelo diferendo da identidade entre umas e outras, e nas suas articulações diferentes em si mesmas.
Só que as literaturas, esses espaços hiperbólicos das línguas, por princípio, não tendem a reclamar a matriz telúrica que faz esgrimir os nacionalismos. Porque as literaturas não são apenas as línguas e os seus divinos espíritos, alimentadas pelas realidades particulares concretas que lhes assistem. Elas são, sobretudo, a transfiguração das reais realidades em mitos, e esse imaginário, diverso na sua origem, tende sempre para alguma coisa que procura atingir a representação do bater universal do coração humano. Mais vasta do que as línguas, mais vasta do que as diversas modulações das línguas, mais ampla do que as literaturas plasmadas nas diferentes línguas, está a Literatura, para que todas as literaturas tendem. Um património que faz do somatório das literaturas uma língua universal, e uma pátria comum, acima de todas as línguas.
Se eu me debruçasse a sério sobre a questão da Língua Portuguesa e o seu futuro, creio que seria por aí que iniciaria o meu caminho. Tentaria compreender que tipo de imaginário e que mitos são oferecidos, hoje em dia, aos leitores do mundo contemporâneo, quando escritos originariamente em língua portuguesa. A esse propósito, lembro que ainda há escassos vinte e poucos anos, no decorrer de um dos Encontros de Estrasburgo, havia quem declarasse que os portugueses nunca tinham contribuído em nada para influenciar o imaginário literário da Europa. Opinião que a realidade, entretanto, se encarregou de desmentir, como se sabe.
Assim, se eu tivesse de me dedicar com demora à questão que é colocada sobre o futuro da nossa língua, a partir do ângulo da Literatura, talvez eu me sentisse na obrigação de dar uns passos atrás no tempo. Talvez recuasse até ao célebre artigo de Eduardo Lourenço, publicado na revista O Tempo e o Modo, em 1966, sob o título rumoroso de Uma geração desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos. Uma espécie de balanço sobre o estado da literatura portuguesa de então, artigo que se tornou uma referência, sintomático da elevada confiança do autor nas gerações da altura. E porque recuaria até esse artigo? Porque nesse testemunho Eduardo Lourenço , centrando-se sobretudo nos autores de ficção da década de 6o, reclamava o reconhecimento de uma nova energia dos narradores portugueses, tocados por um ímpeto revigorante, aos quais atribuía o apadrinhamento do mais nervoso, mais irrequieto e mais transgressor dos pseudónimos de Fernando Pessoa. Ou de como a narrativa neorrealista, stricto sensu , estava sendo contrabalançada pela narrativa psicológica e pelo romance existencialista, e em conjunto se energizavam mutuamente. Esse artigo representava uma auspiciosa descrição do estado da literatura de então, subjetivada e inovadora, como se os narradores tivessem recolhido o que de mais inaugural oferecia o poeta das grandes odes.
Só que em meados da década de 7O a sociedade portuguesa foi abalada nos seus alicerces tradicionais por factos de grande relevo que iriam alterar profundamente a perceção do nosso lugar no mundo, ao mesmo tempo que permitiu que escritores contemporâneos dessa mudança chamassem a si o papel de se desenfeudarem da influência de escolas e de grupos, para testemunharem com urgência, cada um a seu modo, o tempo angular de que participavam. Apesar de ser parte implicada, creio não errar se disser que a geração a que pertenço partiu do princípio de que em narrativa, a máxima subjetivização se compagina com o testemunho concreto sobre o devir das sociedades e a mudança da História. Diria que se passou a descrever os estilhaços do império, a cuja deflagração se assistiu umas vezes como observador, e outras como intérprete. Ou por outras palavras, de entre os descendentes da geração a que Eduardo Lourenço atribuiu o epíteto de filhos de Álvaro de Campos, surgiu uma outra, mais precisa, a dos filhos da Ode Marítima, o poema moderno mais importante da Literatura Portuguesa, aquele que melhor define o sentimento da modernidade global a partir do sentimento de um certo sentir português. O poema que anuncia a subjetividade espasmódica que criou uma nova língua, a da sensorialização da individualidade cruzada com a objetvidade mais feroz, como seja a convocação da grande experiência assassina dos descobridores dos mares.
A Ode Marítima entendida como o poema do grande pirata dos oceanos, sem culpa, sem remorso, sem perdão, sem redenção, apenas a exaltação do instintivo do conhecer pelo sentir, aquele que descreve a sua natureza aventureira, por ímpeto legítimo de se desnudar aos olhos do mundo. A duplicidade de se descrever por dentro e por fora, sobre a distância e sobre a experiência do entornamento pela Terra, bem poderiam ser tomadas como as baías onde se inscreve um dos principais rumos da mais recente literatura. Se eu refletisse sobre a língua portuguesa na sua vertente literária, numa perspetiva de sinais promissores de futuro, creio mesmo que ousaria criar uma espécie de tipologia dos vários temas que recentemente melhor têm promovido a fertilidade da língua, na esteira larga do império estilhaçado que já existia nas entrelinhas da Ode Marítima.
Talvez falasse de uma recente literatura da diáspora, na tradição do país antigo, novamente repartido pelo mundo, aquela que promove a língua da diversidade em face das línguas dos outros, pondo em relevo a capacidade testemunhal do português enquanto língua de dispersão, de melancolia, mas também de uma nova energia no confronto com os novos espaços. Autores como Almeida Faria, nos quatro títulos que integram a Tetralogia Lusitana, ou Maria Velho da Costa em Missa in Albis, são os percursores, nos anos oitenta, de todo um corpo literário de dispersão em que a mitologia da distância ganha contornos de liturgia. Obras que iniciaram modos de falar da diáspora que se prologam nos títulos dos nossos dias. Outro aspeto relevante que dá conta do mesmo estilhaçamento do Império é sem dúvida a literatura de Guerra Colonial, onde a subjetivização e a transfiguração da realidade histórica criaram uma literatura singular, talvez mesmo a mais fértil entre nós, ao longo dos últimos quarenta anos.
Ouso mesmo dizer que a Guerra Colonial, esse conflito a que voltamos como enigma central do nosso último fim de século, e que tendo terminado entre nós, portugueses, não terminou no mundo, antes de outros modos se agravou , representa o tema-mistério que continua, e irá continuar, a reclamar atenção. A Guerra Colonial, que marcou o fim de um império, o início de uma democracia e foi mãe de vários novíssimos países, transformou-se num topicus a que se regressará por muito tempo. É o tema perturbador, aquele que nos resiste na interpretação e na culpabilidade cruzada, e está para os portugueses, como a Guerra Civil para a Literatura de Espanha, a Ocupação nazi para França, o Holocausto para Israel e para a Alemanha, ou a emigração do século XIX para a Irlanda. São curvas da História que ainda não estão dobradas, de que ainda não se veem as bermas suficientemente nítidas. Os seus intérpretes ainda estão aí, em pé, na penumbra, carecendo de esclarecimento e reclamando memória e transfiguração.
Eu não teria dúvida em colocar como iniciadores desse filme interminável feito de palavras, António Lobo Antunes e João de Melo. Muitos lhes deverão muito. Memória de Ver Matar e Morrer, título primitivo de Autópsia de um Mar de Ruínas, inaugurou um tempo literário incomum. Por sua vez, As Naus é um livro central na inscrição da descendência do sentimento vazado em Ode Marítima, para retomar a filiação sugerida. Nesse livro, o grande pirata descobridor perdura ao longo de cinco séculos, e aqueles que partiram são os mesmos que regressam com quinhentos anos de idade. Não é só o império que se encerra, é toda uma épica estilhaçada que é proposta. Uma língua não fica igual a si mesma quando a temas centrais de semelhante natureza se junta a criatividade semântica e a reinvenção dos factos. Sobretudo, quando o tempo e o sentimento empurram para a paródia dos mitos.
O mesmo motivo, o do estilhaçar do Império e as novas construções territoriais, está representado na literatura do Retorno que tardou a ocupar um lugar, mas acabou por surgir com a plena reinvenção da linguagem da perda e da memória do êxodo. Dulce Maria Cardoso com Retorno, ou Isabel Figueiredo com Caderno de Memórias Coloniais, são exemplos dessa contribuição memorial transfiguradora. Assim como existe uma literatura do Regresso aos antigos territórios míticos, posteriormente desmitificados. Estão neste caso alguns livros de referência como A Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes, ou Unia Viagem à Índia, de Gonçalo. M. Tavares. A memória dos percursos abismais, a ida, a ocupação e o regresso dos piratas da experiência marítima preenchem para já esses espaço inconcluso.
Ou ainda uma literatura de transferência, imigração, incorporação e mestiçagem ocorridas nos lugares do antigo território metropolitano. Esse é hoje um dos aspetos mais interessantes, e onde a língua literária, como testemunho da língua viva, corpo dinâmico de incorporações incontáveis, surge com uma inegável pujança. A amálgama social, de que os bairros periféricos são o retrato concentrado da profusão mestiça que caracteriza a sociedade portuguesa das últimas décadas, estão presentes em muitos dos títulos atuais. São reportagens subjetivas da alma com o retrato dos mundos reais cruzados no seu interior. Lê-se, por exemplo, em As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral, a propósito do nome da drogaria Macondo, num bairro da Margem Sul onde a ação do romance decorre. Basta uma breve nota de rodapé a propósito do topónimo Macondo como origem não literária, para se dar conta desses novos atlas microcósmicos – «O senhor Neves e a mulher tinham uma roça em África, na província do Moxico, mais precisamente nos arrédores (força de expressão) da cidade de Macondo. No Bairro Amélia havia também o bazar Malange, a frutaria Namibe e a papelaria Humabo, do senhor Aires. Cafés, havia O Nortenho, O Minhoto e O Alentejano, sendo que nada, exceto o nome, associava os cafés à terra natal dos seus proprietários».
Realidade sociológica, apenas? Não. A língua produz-se no caldo da vida e com a reformulação da vida, também a língua se reformula. Partilho do princípio enunciado por Virgínia Woolf de que só ignorando a circunstância literária se atinge o âmago da verdadeira literatura. Julgo do mesmo modo que só esquecendo a materialidade da língua se atinge o degrau desejado na escada do seu pleno uso. Por muito que se sugira o contrário, o interior de uma e de outra, não dispensa nenhum tipo de afluentes, isto é, elas são feitos de vida impura.
Aliás, a Literatura é impureza, tantos são os detritos que para ela confluem, e a Língua, o fluido da qual a Literatura se serve, é por definição um sistema impuro. A Língua reformula-se permanentemente, em cada dia esquece palavras, cria palavras, transforma-se em contacto com novos sistemas, agrega elementos dos novos sistemas. É um processo em construção. Para os puristas, esse processo de alteração contínua tende, em cada momento, a ser interpretado como um processo de deterioração. Mas nós sabemos, pelo simples uso prático que dela se faz, que a deterioração é sintoma de nova vida. Na língua, o que hoje é corrupção e ousadia, amanhã pode ser de uso corrente, e depois de amanhã pode ser clássico. A mestiçagem é um dos processos que assegura o fulgor de uma língua e dela faz a sua prova de vitalidade. A literatura é precisamente uma das caixas negras onde fica registada essa vitalidade criadora. A seu lado, a música é um laboratório de linguagens que vale a pena escutar, se se quiser antever o futuro da língua. Numa simples letra de música hip-hop pode-se assistir, por exemplo, à glorificação da identidade mista reclamada através de uma linguagem de mestiçagem. O cantor Boss AC, filho de cabo-verdianos, autodefine-se deste modo na letra de uma sua composição a que dá o título de Faz Favor de Entrar, ou Tuga Night.
Deixamos beef lá fora, críticas
[também
Falso aqui não é ninguém, só entra
[quem vem por bem.
A festa é nossa, não é preciso
[cartão da casa
Se vens com preconceitos, yo baza,
[baza
Poucos entendem o plano, rap
[veterano
Ouves umas dicas em inglês, mas
[não sou americano,
Nem italiano, chama-me tuga -
[verdiano Mano, ist'é hip hop lusitano
Esquece o bling-bling que ele aqui
[não brilha
Deportamos mafiosos de volta pá
[Sicília...
Aquecemos o ambiente cause we
[hot like that
Don't hate beacuse I'm tuga like
[that...
Poder-se-á pensar que semelhantes realizações da linguagem poética não ultrapassam os limites do jargão confinado a grupos específicos. Eu não as desprezaria como sintoma de futuro. A Língua faz-se da mistura, do confronto, da anuência tácita em face das outras línguas, as outras sintaxes, as outras morfologias e semânticas. O núcleo da estrutura basilar de uma língua será tão mais forte, quanto mais flexível for a sua estrutura de superfície. Pelo menos é o que a Literatura e em especial a Poética, mesmo nos seus elementos mais rudimentares, mostra.
Se se trata de um conceito utilitário da Língua em relação aos factos extra linguísticos? É provável. Nunca ninguém mediu exatamente onde a língua faz o mundo e o mundo faz a língua. Mas sabemos que a celebração da língua acarreta a celebração dos mundos que ela traduz,O fulgor das línguas do futuro dependerá das causas, das riquezas, das projeções ao largo que elas acompanham e por isso desencadeiam. Sempre assim foi. Há uma correlação direta entre o fulgor das línguas e a civilização que as fala.
Nesse sentido, lembro que em 1902, Joseph Corand em The Heart of Darkness inaugurou literariamente o século da consciencialização da relação do homem europeu com o colonizado, esse tema tabu até ao final do século XIX. Noventa anos depois, o escritor sueco Sven Lindqvist, recorrendo à célebre frase proferida por Kurtz, o herói do livro de Conrad, «exterminate all the brutes», tentaria demonstrar como o colonialismo exercido pelos europeus sobre os não europeus, tinha sido precursor da fúria arrasadora do genocídio que conduziu ao holocausto no interior da própria Europa. Hoje em dia, o nosso imaginário segue por outros caminhos, tanto mais que ouvimos com frequência a mesma frase, mas agora pronunciada no sentido inverso. O destinatário da eliminação, o imperativo verbal Exterminate, sentou os europeus no lugar oposto. The brutes, os selvagens que estão na mira dos exterminadores dos nossos dias, somos nós, os ocidentais. Assim mesmo, assistimos à réplica inversa, como se nada se tivesse aprendido no vaivém da História, entre uns e outros.
O futuro próximo joga-se na dialética desta alteridade. Nas voltas da história dessa alteridade, que a Literatura mitifica e transfigura, as várias literaturas em Língua Portuguesa concorrerão para a compreensão da marcha humana, com a experiência longa e recente que lhes assiste. Pela memória marítima da travessia, pela deflagração do império, pelo ajuste de contas do amor e do ódio que acompanhou essa decomposição, pelos novos encontros que dela resultaram à luz de novos conceitos humanos visando a paz em torno deste corpo comum. Não, a Literatura, como a língua, não vivem por si mesmas e para si mesmas. Tal vivência não existe. Por certo que contribuiremos para o imaginário do novo mundo , e por certo que a nossa língua será futura.
Cf. A origem da língua portuguesa + 5 curiosidades da língua portuguesa
Texto transcrito do Jornal de Letras do dia 11 de maio de 2016.