« (...) Estas gírias têm vida curta. Cada geração começará por adotar a gíria dos adolescentes "alfa" mais velhos, para depois a mudar e adequar ao seu próprio estrato. (...)»
Uma das razões por que se ouve dizer que os jovens «não sabem falar» e que grandes desgraças daí advirão à língua portuguesa é o facto de adolescentes e jovens adultos (apenas?) usarem uma linguagem muito própria, gírias específicas, com vocabulário reduzido, bordões muito marcados e um que outro palavrão.
Para efeitos desta conversa, definamos «ser adolescente» como encontrar-se a viver a segunda década da vida e «ser jovem adulto» como ter entre 20 e 25 anos. Temos tendência a esquecer o quanto é próprio da adolescência e da juventude a pulsão para, por um lado, reforçar a identificação com os pares, com a "tribo", querer a todo o custo ser um deles, e, por outro, marcar a diferença e até a contestação em relação aos "outros", aos "cotas" e aos valores e às normas estabelecidos.
A linguagem é um instrumento privilegiado para satisfazer esta pulsão e, por isso, a dos adolescentes e jovens adultos pode incomodar tanto os adultos (especialmente os que já tiverem esquecido as suas próprias adolescência e juventude). A criação ou a adoção de gírias específicas a cada nova geração de adolescentes desempenha esse duplo papel, simultaneamente agregador e discriminador.
As gírias, que são desviantes em relação à norma linguística e que eles usam em situações informais, comportam um vocabulário tipicamente reduzido, circunscrito à designação dos aspetos mais correntes e marcantes da vida do grupo – o dia a dia, a família, a escola, algum interesse partilhado (tatuagens, piercings, surf, música...); a este vocabulário juntam-se expressões com função marcadamente provocadora, os palavrões, assim como bordões linguísticos, isto é, palavras ou expressões repetidas constantemente, muitas vezes para preencher pausas destinadas à reorganização do pensamento.
Sendo tão reduzido, é natural que o vocabulário pertencente às gírias seja repetido à exaustão, ostentado com orgulho, deixando claras aos estranhos, por um lado, a sensação de não pertença e, por outro, a de que adolescentes e jovens nada conhecem para além dele.
Estas gírias têm vida curta. Cada geração começará por adotar a gíria dos adolescentes "alfa" mais velhos, para depois a mudar e adequar ao seu próprio estrato. Alguns poucos vocábulos pertencentes a essas gírias irão, porém, permanecer na língua para além da adolescência dos seus falantes, na oralidade e em registos informais. Com o tempo, alguns destes vocábulos poderão transitar para outros registos, deixar de ser sentidos como marcados e (quem sabe?) até integrar o vocabulário corrente da língua.
Com a entrada na idade adulta, cada geração vai naturalmente entender que existe vida para além da "tribo", expandir o seu conhecimento lexical e pragmático da língua, aprender a adequar o seu registo linguístico às circunstâncias de uso e acabar por fazê-lo. Anos depois, cada geração virá a dizer dos adolescentes e jovens adultos do seu tempo que «não sabem falar» e que daí advirão grandes desgraças à língua portuguesa. Sempre assim foi e sempre assim será. A norma linguística, conservadora por definição, irá evoluindo mais lentamente do que a língua do quotidiano, mas esta, inevitavelmente, ir-se-á adaptando às necessidades e às opções das sucessivas gerações que a falarem.
Artigo publicado no Diário de Notícias em 5 de dezembro de 2020.