«Neste Dia Internacional da Língua Materna, celebrado anualmente a 21 de Fevereiro, reflictamos sobre a importância de promover a diversidade linguística local e global, garantindo a todas as pessoas o direito inalienável de se realizar enquanto indivíduos e actores sociais através das suas línguas maternas.»
Todos os portugueses já terão tido contacto com, pelo menos, a primeira estrofe de Os Lusíadas. Nela, faz-se a primeira referência a um outro lugar de onde os navegadores portugueses, «por mares nunca dantes navegados», teriam passado ainda além – refiro-me, pois, à Taprobana, actual Sri Lanka. Por ares nunca dantes sobrevoados, ali cheguei eu em 2017, integrada numa equipa multidisciplinar que procurava documentar e descrever a língua e tradições remanescentes de uma comunidade minoritária de euro-asiáticos de ascendência portuguesa que ainda aí habitariam.
Mais de 300 anos após a interrupção do contacto directo e continuado com o português europeu, cerca de 1300 pessoas preservam uma língua crioula de base lexical portuguesa, expressão única da sua especificidade identitária num espaço altamente multicultural e multilingue como o Sri Lanka. São, no entanto, cada vez menos as crianças e jovens que adquirem e/ou aprendem esta língua, preterindo-a em detrimento das línguas maioritárias do país. O crioulo português do Sri Lanka é, assim, uma língua ameaçada e em risco crescente de extinção.
Este cenário de ameaça linguística não é único no mundo; uma das estimativas mais recentes indica que, de um universo de 7000 línguas orais e gestuais reconhecidas no mundo, 46% estarão ameaçadas. Se nenhuma intervenção significativa for, entretanto, definida e aplicada, prevê-se que, até ao final deste século, desaparecerão 1500 línguas, algumas das quais permanecendo irremediavelmente indocumentadas.
Enquanto a diversidade linguística global diminui a um ritmo acelerado, as 30 línguas mais faladas do mundo, beneficiando de reconhecimento institucional e transnacional, atraem cada vez mais falantes, incentivados pelas melhores oportunidades de acesso à informação, à educação e ao mercado de trabalho que estas potenciam. Comunidades e grupos linguísticos minoritários são, assim, pressionados directa ou indirectamente para o abandono de línguas ancestrais em detrimento de línguas com maior valor instrumental. Estes desequilíbrios linguísticos ocorrem em todos os continentes, regiões e países do mundo, espelhando os desequilíbrios sociais de cada sociedade.
Portugal, considerado tipicamente um país homogéneo em termos linguísticos e culturais, também integra comunidades e grupos linguísticos minoritários, alguns dos quais desconhecidos da generalidade da população: por um lado, falam-se línguas autóctones como a língua gestual portuguesa, o mirandês ou o minderico; por outro lado, existem numerosas línguas de imigrantes e de descendentes de imigrantes, sendo o cabo-verdiano e o guineense (kriol) os casos mais paradigmáticos.
Neste Dia Internacional da Língua Materna, celebrado anualmente a 21 de Fevereiro, reflictamos sobre a importância de promover a diversidade linguística local e global, garantindo a todas as pessoas o direito inalienável de se realizar enquanto indivíduos e actores sociais através das suas línguas maternas. Na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos alude-se à necessidade de «corrigir os desequilíbrios linguísticos com vista a assegurar o respeito e o pleno desenvolvimento de todas as línguas e estabelecer os princípios de uma paz linguística planetária justa e equitativa, como factor fundamental da convivência social». Afinal de contas, direitos linguísticos são também direitos humanos.
N. E. – Ler também "Reivindicar o direito a uma língua minoritária" (21/02/2023), da mesma autora.
Texto publicado no suplmento P3 do jornal Público no dia 21 de fevereiro de 2023. Segue a norma ortográfica de 45.