«Longe vão os tempos em que uma declaração era algo dito por um responsável público ou então por um cidadão comum num tribunal ou noutra situação que o responsabilizava perante o Estado – por exemplo, declarações fiscais ou de falência.»
A frase sugeria uma ocasião solene e formal, talvez uma audiência de julgamento: «O avançado não quis prestar declarações.» Mas era apenas um restaurante onde um futebolista e o seu agente tinham estado a comer. Isto foi há alguns meses. Corriam especulações sobre o futuro próximo do futebolista, e os muitos milhões que o potencial negócio envolvia justificavam talvez ficar um pouco impressionado. Mas a impressão não seria menor nem maior se o jornalista tivesse dito simplesmente: «O avançado[1] não quis falar sobre o assunto» ou «Não quis dizer nada».
Declarar vem de clarare («tornar claro»), mais o prefixo intensivo de. Hoje em dia, toda a gente faz "declarações", e muitas vezes não só as faz como as "presta". Nem sequer é preciso estarem em causa negócios multimilionários. Uma parte não despicienda da atividade nas redes sociais, e não só, é dedicada a comentar "declarações" de outrem – um outrem que pode ser simplesmente um(a) apresentador(a) de televisão que diz uma trivialidade qualquer sobre um(a) colega. Ainda há dias ficámos a saber que uma figura dos media «reagiu às declarações» feitas por outra figura dos media, que por sua vez reagia a críticas que lhe tinham feito por causa de declarações suas nas redes sociais.
Há rankings de notoriedade baseados nas «declarações polémicas» que alguém vai fazendo – um alguém que só é alguém, justamente, por ter feito essas declarações. Independentemente de o que assim se presta prestar ou não, é logo promovido à categoria de declaração merecedora de comentário. Longe vão os tempos em que uma declaração era algo dito por um responsável público ou então por um cidadão comum num tribunal ou noutra situação que o responsabilizava perante o Estado – por exemplo, declarações fiscais ou de falência.
As declarações de amor não obrigam perante o Estado, mas também podem ter implicações solenes, designadamente contratuais. O uso de declaração aí não choca. Já no caso de pessoas que à conta de umas quantas declarações bombásticas conseguem chegar a altos cargos públicos – há q.b. de exemplos hoje em dia – não será caso para declarar o estado de emergência. Mas imagine-se como será se algum dia lhes apetecer declarar o estado de sítio para fugirem às consequências das asneiras que fazem. Já estivemos mais longe.
[1 N.E. (16/10/2019) – Avançado é um termo futebolístico empregado em Portugal e significa o mesmo que atacante, palavra característica do Brasil.]
Apontamento assinado pelo jornalista português Luís M. Faria e publicado na Revista do semanário Expresso em 12 de outubro de 2019.