Controvérsias // O português do Brasil
Escritora brasileira x editor lusitano
Norma e pluricentrismo linguístico
«Raquel de Queirós [...] faz uma crítica antecipada ao normativismo anacrônico, subserviente a um ideal que não reflete a identidade nacional do brasileiro.»
Raquel de Queirós (1910-2003), numa de suas deliciosas 100 Crônicas Escolhidas, fala-nos de sua reação em face da carta de um editor português, que desejava publicar-lhe as obras. Raquel transcreve este expressivo trechinho da missiva do editor lusitano:
«... A necessidade que se impõe para uma edição portuguesa de autores brasileiros, de certas e inofensivas alterações, como sejam a deslocação de pronomes (em certos casos), harmonização da ortografia com as determinações do Acordo Luso-Brasileiro — que em Portugal é cumprido — e uma ou outra substituição de termos pouco usados em Portugal ou tenham sentido diferente daquele que o autor lhe que quis dar.»
Mas a atitude de Raquel de Queirós foi clara: «Pois a resposta que tenho a dar ao prezado editor português é a mesma que já lhe deu, tempos atrás, meu editor e meu amigo José Olímpio: Muito obrigada, mas assim, não.» E depois: «A primeira interrogação que nos ocorre diante de tal projeto de "alterações", é esta: será verdade, realmente, que o público português não entende a língua portuguêsa do Brasil, tal como a falamos? Não haverá, na ideia dessas alterações, mais uma questão de prestígio que de necessidade?»[*]
E, após uma série de oportunas considerações, vêm estas linhas, que se diriam escritas com pena de fogo e o coração à mostra:
«Meu caro amigo português, talvez essa ideia o irrite, mas a verdade é que, hoje, a sua língua é um patrimônio tanto nosso quanto seu. Sei que o trabalho de formá-la, assim bela e nobre, foi dos portugueses. Mas, também, já há quatrocentos anos que a amamos e a apuramos ao nosso modo. Nem tinha ela mais idade quando a usou Camões. Vocês no-la deram, como nos deram tudo o mais com que se fez o Brasil. E hoje ela faz parte essencial da nossa vida de povo, tal como faz parte da sua. Por nós tem sido enriquecida e fecundada. Se em Portugal acham que a maltratamos e a desfiguramos, é porque cada um tem a sua maneira de amar e, nessas questões, o que é ortodoxia para uns é heresia espantosa para outros. Não, não me venham dizer que em Portugal não entendem o que escrevemos. E, fosse esse o caso, bastaria a aposição de um glossário no fim de cada livro para resolver as dúvidas. Mas o que nos propõe é outra coisa: é correção, é conserto de pronomes, é a revisão do caçanje brasileiro que fere o bom ouvido peninsular. Acontece entretanto, meu caro amigo, que esse caçanje, que esses pronomes mal postos, que essa língua que lhes revolta o ouvido, é a nossa língua, é o nosso modo normal de expressão, é — ouso dizer — a nossa língua literária e artística. Já não temos outra e, voltar ao modelo inflexível da fala de Portugal, seria para nós, a esta altura, uma contrafação impossível e ridícula » [Trecho extraído das páginas 11 e 12 do interessantíssimo livro O modernismo brasileiro e a língua portuguesa (1966), de Luiz Carlos Lessa].
Algumas lições aprendidas com este episódio:
1. Raquel de Queirós formula uma ideia central da linguística moderna: a língua portuguesa não é propriedade exclusiva de Portugal. Mais ainda, ela antecipa a noção de pluricentrismo linguístico, ou seja, uma mesma língua com múltiplos centros normativos e culturais legítimos, uma copertença histórica.
2. Dizer que o português não entende o português brasileiro não atesta um fato, sobretudo em linguagem escrita culta, mas simboliza uma espécie de tentativa de sobrevalorização e controle normativo visando à adequação ao ouvido peninsular, isto é, a uma espécie de autoridade cultural portuguesa.
3. Quando o editor fala em «alterações inofensivas», «correção», «conserto de pronomes», Raquel responde com lucidez que o pedido de edição é, na verdade, a negação de uma norma legítima já estabilizada — afinal, o português brasileiro já possuía uma norma literária própria há cerca de um século, de modo que interferir nela implicava (implica) desautorizar a produção escrita brasileira.
4. Raquel de Queirós reforça que a literatura cria e consagra a norma culta, uma vez que não existe língua culta sem prática efetiva de escrita de qualidade — afinal, a norma não é um modelo abstrato/artificial, mas sim recorrência estável em textos consagrados. Assim, não faria sentido adaptar uma norma à outra, promovendo a diversidade na unidade.
5. A alusão a um «caçanje brasileiro» é revelador, pois ecoa exotização/folclorização da variante brasileira. É aí que Raquel inverte o eixo: não é erro nem corrupção nem um afastamento defeituoso do português europeu; é historicização natural de uma língua viva em alto nível cultural e literário.
6. Por fim, Raquel de Queirós nos dá uma lição de história linguística: normas não se impõem retroativamente; tentar fazê-lo gera artificialismo. Aqui ela faz uma crítica antecipada ao normativismo anacrônico, subserviente a um ideal que não reflete a identidade nacional do brasileiro. A escritora pisa no chão e marca o território do respeito às diferenças das línguas pluricêntricas.
[*] Mantém-se a grafia do original citado.
Texto que Fernando Pestana escreveu e publicou no Facebook em 16/12/2025, aqui partilhado com a devida vénia e autorização expressa do referido autor. Crédito da imagem: "Os cem anos da seca e 'O quinze' na imprensa", Grupo Editorial Record, 05/01/2016.
