A actual controversia orthographica remonta á reforma de 1911, a qual teve duas consequencias notaveis e nefastas: no plano da lingua escripta, a physiognomia graphica da lingua portugueza foi profundamente alterada - attente-se no titulo e no primeiro periodo d’este artigo graphados em orthographia antiga que ninguem terá difficuldade em ler; no plano social e político, a ortografia, consignada em texto legal, tornou-se questão de Estado e passou a depender do arbítrio da classe política.
Qual o impacto real previsível em Portugal da reforma prevista no Acordo Ortográfico de 1990 (AO)? Nomeadamente, que grupos de falantes e que sectores da sociedade serão mais afectados e de que forma (impacto extensional)? Que incidência efectiva terá a reforma na expressão escrita e oral do português europeu (impacto intensional)? Não se sabe. Ninguém se deu ao trabalho de estudar o assunto.
No entanto, qualquer grande projecto do Estado português, como a construção de um aeroporto internacional ou de uma rede ferroviária de alta velocidade, requer a realização de estudos sectoriais prévios e um estudo de impacto ambiental. São empreendimentos que nos afectarão duradouramente a todos, indivíduos e comunidade. Uma nova ortografia para o português europeu é tão importante como essas infra-estruturas. Onde estão os pareceres técnicos de incidência extensional e intensional? Onde está o «estudo de impacto ambiental» da nova ortografia?
Não foram produzidos argumentos linguísticos sérios, baseados em dados fiáveis, para justificar os aspectos mais controversos da reforma, que ninguém quer e ninguém pediu (fora do ambiente rarefeito das academias, da diplomacia e de alguma «intelligentzia»).
Por exemplo, a Nota Explicativa (NE) do AO diz que as palavras afectadas pela supressão das chamadas «consoantes mudas» representam 0,54% do «vocabulário geral da língua» (o que é considerado pouco significativo em termos quantitativos). A afirmação ilude o facto de a incidência real desta medida só poder ser aferida a partir do conhecimento da frequência de uso das formas afectadas. A NE admite que há palavras afectadas de uso muito frequente (acção, factura, óptimo, etc.). Os lexicólogos distinguem entre vocabulários corrente, comum e de especialidade, com distintas quantidades absolutas de termos e distintos índices de frequência. Como a «avaliação estatística» (sic) da NE é uma simples contagem feita a partir de uma lista de palavras, o impacto desta mudança nos vocabulários sectoriais em uso na sociedade portuguesa é desconhecido. A baixa quantidade de palavras afectadas não é argumento.
É preocupante e chocante a insensibilidade dos promotores do AO aos valores de património e estabilidade ortográfica em Portugal. Nas escolas, a insegurança ortográfica que inevitavelmente se instalará terá efeito cumulativo com outras pragas (como a TLEBS) que assolam o nosso depauperado sistema educativo.
A propósito de insensibilidade (e insensatez), Fernando Cristóvão, um dos negociadores do AO, escreveu aqui (Actual, 25/04/08) que «a Albânia, a Turquia e o Vietname trocaram os seus alfabetos pelo latino, deixando, respectivamente, os seus caracteres gregos, árabes e chineses, sem que as suas culturas sofressem com tão radical mudança». Será mesmo assim? De que informação rigorosa sobre a matéria disporá este defensor do AO? Não será que tal mudança impossibilitou de forma súbita e irreversível a albaneses, turcos e vietnamitas o acesso à sua tradição textual e cultural, a qual é agora domínio exclusivo de especialistas e académicos? Alguém imagina a Grécia, a Rússia ou o Japão a abandonar os seus ancestrais sistemas de escrita? Se temos (?) de nos comparar com outros, não seria preferível fazê-lo com nações ciosas da sua herança cultural?
N.E. – Desde cedo, os jornais da época noticiaram e comentaram esta primeira iniciativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa. Por aí pode acompanhar-se a preparação de impressores e tipógrafos para receber a reforma em vigor desde 1911; por aí perpassa o terçar de armas a favor de e contra, que chegou a ser impugnado por petição coletiva; e por aí se percebe que a liça em torno do mais recente Acordo Ortográfico de 1990 é o regressar de uma velha questão do princípio do século XX, em que entraram nomes como José Correia Nobre de França, Alexandre Fontes, Henrique Brunswick e os dos filólogos Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Cândido de Figueiredo, que assinaram cartas em Diário de Notícias e n' O Seculo. Intitulada “A Questão Ortográfica", Gonçalves Viana, relator da Comissão Oficial da reforma ortográfica de 1911, dirigiu uma a carta Rodolf Horner e uma outra a Cândido de Figueiredo (“A reforma ortográfica").
Artigo de opinião publicado no caderno Actual do semanário português Expresso de 3 de Maio de 2008. A pedido do próprio autor, restituímos a ortografia original do título, a qual foi alterada no referido caderno.