Poucos dias depois de ter actuado como cantor no Funchal, Gilberto Gil demitiu-se de ministro da Cultura do Brasil (substitudo entretanto pelo sociólogo brasileiro Juca Ferreira), deu uma entrevista ao semanário português "Expresso", conduzida pela jornalista Sara Moura, de que respigamos a seguir algumas passagens — nomeadamente no que se refere à língua e ao Acordo Ortográfico.
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P. — Qual é a sua opinião acerca do Acordo Ortográfico?
R. — Costumo dizer que os portugueses são necessariamente mais ciosos da língua do que os povos da colonização e da diáspora, que criaram variações da língua e chegaram quase a produzir outras línguas. Como dizia uma canção brasileira, "o brasileiro já passou para lá do português", nós no Brasil já somos factores dinâmicos de transformação da língua portuguesa, por isso, não nos preocupamos tanto com a língua no sentido das suas matrizes, dos seus elementos básicos e históricos. As línguas são organismos vivos, corpos dinâmicos que têm sistemas de absorção e de eliminação e que estão em constante transformação. Os acordos ortográficos deveriam ser perenes e estar submetidos a uma permanente vigília da língua, através de um conselho permanente, com ampla representação de especialistas e também de pessoas comuns. É preciso que todos nós estejamos atentos aos impactos das novas tecnologia na língua, como a Internet. Essa atenção não pode ser dada simplesmente sentado muito formalmente e circunspectamente em torno das mesas. É preciso que as considerações que façamos sobre as línguas sejam leves. A língua é uma coisa séria, mas também não é. A língua é tudo, é todo o arsenal de meios para a comunicação. A língua é muito mais do que uma simples escrita, do que uma maneira de falar. A língua é uma coisa muito grande, muito ampla. A língua inclui o próprio silêncio.
P. — E quanto à petição contra o Acordo Ortográfico que foi entregue na Assembleia da República Portuguesa?
R. — Quando Portugal diz que estão a propor mais mudanças para Portugal do que para o Brasil, é natural que assim seja. A língua em Portugal é histórica e necessariamente mais rígida do que nas ex-colónias. Muitas das coisas que se cogita fazer agora em Portugal já foram feitas no Brasil e noutros países. Seria, então, mais conveniente a criação de um conselho permanente, o que evitaria que os impactos e os choques das transformações fossem tão grandes. Acho que o Acordo não deveria ser só ortográfico mas também fonético, porque os modos escritos são importantes, mas os modos falados talvez sejam mais importantes ainda. É toda uma polémica que compreendo, mas é levada a intensidades extremas que não são necessárias. As pessoas deveriam estar mais calmas em relação ao Acordo Ortográfico.
P. — Que esforços é que têm sido feitos a nível do intercâmbio cultural entre o Brasil e Portugal?
R. — Ao longo de cinco anos temos desenvolvido acordos entre os ministérios da Cultura do Brasil e de Portugal, no sentido de criar as condições necessárias para o intercâmbio entre culturas. Ainda há pouco, em Lisboa, telefonei ao José Saramago e combinava os esforços que o Brasil deve fazer para levar a sua exposição de comemoração do decano do Prémio Nobel. Há cerca de um mês, com o ministro José António Pinto Ribeiro, tratámos de uma série de programas no campo da museologia, do património material e imaterial, no campo das bibliotecas, dos acervos, do cinema, do desenvolvimento de actividades no campo dos audiovisuais. Também apostamos nas colaborações trianguladas, como, por exemplo, entre Portugal, Espanha e Brasil.
P. — O Brasil deixou de ser sinónimo apenas de novelas e futebol. Como vê a projecção do Brasil enquanto país exportador de cultura, com cineastas, escritores e artistas a afirmarem-se na cena internacional?
R. — Muito bem, porque vai ao encontro das políticas que o Ministério da Cultura está a implementar no sentido de proporcionar ao Brasil uma boa capacidade de exportação da sua cultura, do seu cinema, da sua música, da sua literatura... Temos qualidade e diversidade cultural suficientemente ampla para isso.