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O nosso idioma // Uso e norma

O comparativo de bem em pré-campanha eleitoral

«Melhor preparado» ou «mais bem preparado»?

Em Portugal, a preparação das eleições presidenciais, que se realizam em 18 de janeiro de 2026, é marcada por uma série de  debates televisivos entre os oito candidatos, no período compreendido entre  17 de novembro e 22 de dezembro de 2025. Nas redes sociais, um comentário ao debate entre dois candidatos (Henrique Gouveia e Melo vs. João Cotrim de Figueiredo, SIC, 20/11/2025) motiva nesta página uma reflexão sobre quão frágil é fronteira entre juízos de correção linguística. 

Lê-se nesse comentário que certo candidato «está muito melhor preparado», mas a norma parece não se compadecer e o que se esperaria no contexto em escrutínio era «mais bem» como comparativo de bem. Assim mandará a norma: quando este advérbio modifica um particípio passado, como é o caso de preparado, não se usa melhor, e a forma correta, no caso, é «mais bem preparado». A Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 2145) é perentória, quando nela se afirma que a forma analítica deste comparativo («mais bem») se dá na seguinte situação (o asterisco assinala que a frase é incorreta):

«Combinação do operador comparativo mais com uma estrutura adjetival ou participial iniciada por bem ou mal. A incorporação [a forma sintética melhor] não é permitida:

(21) a. O livro está {mais bem/mais mal) traduzido do que eu pensava.

b. *O livro está melhor/pior traduzido do que eu pensava.

(22) a. Ele hoje está {mais bem/mais mal) disposto do que habitualmente.

b. *Ele hoje está melhor/pior disposto do que habitualmente.»

E, contudo, pode perguntar-se com impertinência se é erro mesmo grave empregar «melhor traduzido/disposto». A pesquisa pode conduzir a um juízo benevolente, porque o referido preceito nem sempre foi seguido sem vacilação na história recente da língua portuguesa.

Com efeito, se no Ciberdúvidas se tem recomendado ao longo de quase três décadas a forma «mais bem» antes de particípios adjetivais, a verdade é que certos autores prescritivistas aceitavam melhor nesse contexto. É o caso de Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), que defendia este uso com abonações literárias (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958):

«[...] quando bem é distinto do adjectivo que se lhe segue, pode, ao contrário do que estipulam certos gramáticos, usar-se o comparativo melhor, em vez de mais bem, como praticam bons Mestres da Língua. [...] Nós julgamos que se torna indiferente o emprego de mais bem (e mais mal) ou melhor (e pior), desde que bem (e mal) não forme composto com o adjectivo subsequente.»

Botelho de Amaral regista várias abonações, a maior parte de autores do século XVI em diante, até Camilo Castelo Branco:

«[...] O próprio Camões em Os Lusíadas, IX, 58: "O ponto ... melhor tornado no terreno alheio...». Camilo em O Santo da Montanha, 258 expressa-se assim: "aceitou um almoço melhor adubado que o da ceia...»

E o autor citado junta depois mais atestações da prosa camiliana.

Entre autores prescritivistas do Brasil, as posições também se dividem. Mas o parecer geralmente sereno e equilibrado de Maria Helena de Moura Neves (1931-2022) ajuda a definir a atual situação normativa quanto a este uso no seu Guia de Uso do Português (2002):

«1. A forma analítica (mais bem) do comparativo de superioridade, e do superlativo relativo de superioridade do advérbio bem (e não a forma sintética melhor), é a que, tradicionalmente, se recomenda para uso, junto de um particípio. A função do curso prévio para a Academia Militar, portanto é MAIS BEM desempenhada pelas já existentes. [...] Aquele sujeito, nas suas barbas, garantiu que um elefante era MAIS BEM apanhado do que eu. [...] Entretanto, também são bastante usadas construções do tipo: melhor desempenhadomelhor apanhado.»

Importa ainda registar o que se diz na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (Lexikon, 2017, p. 564):

«2. A par dessas formas anômalas, existem os comparativos regulares mais bem e mais mal, usados, de preferência, antes de adjetivos-particípios:

As paredes da sala estão mais bem pintadas que as dos quartos.

Não pode haver um projeto mais mal executado do que este.

Advirta-se, porém, que na posposição só se empregam as formas sintéticas:

As paredes das salas estão pintadas melhor que as dos quartos.

Não pode haver um projeto executado pior do que este.»

Que pensar, então, de tudo isto? Devem aceitar-se, afinal, casos como «melhor traduzido», «melhor desempenhada» ou «melhor pintadas»? Relativamente a recomendar «mais bem», não se afigura razão para rever essa recomendação. Mesmo assim, talvez seja tempo de moderar a energia com que se defende a ideia de «mais bem» constituir a única forma legítima nos contextos em questão.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa