« (...) O primeiro grande Adamastor que se apresenta a estes jovens [guineenses em Portugal] é o preconceito, o deles e o que sofrem, e que só o conhecimento poderá vencer. (...)»
Tive no sábado passado [27/01/2024] privilégio de assistir a um evento inédito: a primeira reunião de trabalho de um grupo de (ex-)estudantes guineenses do ensino superior em Portugal, para discutir questões relacionadas com o ensino, a situação linguística e o papel das diferentes línguas da Guiné-Bissau. A reunião decorreu em formato presencial e remoto, o que permitiu reunir guineenses de vários pontos do país e da Guiné-Bissau.
No início, Luís Blak apresentou o seu trabalho de doutoramento, recentemente concluído, sobre a importância da consciência fonémica na aprendizagem da leitura e da escrita em língua portuguesa por crianças guineenses em idade pré-escolar. A consciência fonémica ou fonológica, («saber que a língua, no seu modo oral, é formada por unidades linguísticas mínimas – os sons da fala […] – e que os caracteres do alfabeto representam, na escrita, essas unidades» – O Conhecimento da Língua: Desenvolver a Consciência Fonológica) favorece a aprendizagem da leitura e, se a sua promoção é importante para uma criança alfabetizada na sua língua materna, mais o será para crianças alfabetizadas numa língua que não é a sua e lhes é desconhecida, como acontece (infelizmente, digo eu) com a quase totalidade das crianças da Guiné-Bissau.
Após a apresentação, passou-se ao debate entre os participantes. Ficaram claras duas posições distintas relativamente às questões linguísticas e educativas na Guiné-Bissau: a) a dos guineenses que regressaram ou pretendem regressar ao país e contribuir para o seu desenvolvimento e b) a daqueles que já estão radicados em Portugal ou pretendem fazê-lo. Se para os primeiros está clara a necessidade de defender o multilinguismo na Guiné-Bissau, como parte da identidade nacional, e promover a codificação do crioulo guineense, para os segundos, o multilinguismo da Guiné-Bissau é um obstáculo a eliminar, sendo mais importante que os guineenses aprendam português “correto” para que possam mais facilmente integrar-se na sociedade e cultura portuguesas, aprofundando a dicção e eliminando o sotaque. Ambas as posições são entendíveis, sustentadas em diferentes experiências de vida e perspetivas de futuro. Importa, porém, esclarecer conceitos.
Dicção tem um significado ligado à linguística (articulação dos sons da fala, forma de pronunciar) e outro ligado à retórica (escolha e combinação de palavras com vista à sua boa utilização e expressividade). Não entendi qual significado estava a ser convocado. Sotaque significa «pronúncia típica dos falantes de uma determinada região» (e.g. sotaque madeirense) e «forma particular e imperfeita de pronunciar uma língua estrangeira». Também não sei qual dos significados era referido, mas sei que, para os intervenientes, falar com sotaque é um estigma, uma marca infamante que é preciso eliminar a todo o custo. Entendo o porquê da posição ali defendida: em muitas instituições e empresas portuguesas, é impossível conseguir um emprego quando se tem o «sotaque errado» – o que é uma forma de xenofobia linguística, de classismo.
O primeiro grande Adamastor que se apresenta a estes jovens é o preconceito, o deles e o que sofrem, e que só o conhecimento poderá vencer. Também por isso, me congratulo com a iniciativa destes guineenses que, na semana em que se comemorou o Dia Internacional da Educação, em vez de questionarem o que o seu país pode fazer por eles, procuram determinar o que eles podem fazer pelo seu país. E é muito. Oxalá a vontade nunca lhes esmoreça.
Crónica da linguista e professora universitária portuguesa Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias d 29 de janeiro de 2024.