«(...) Tendo em conta a grande dispersão geográfica do povo romani (sobretudo a partir da região dos Balcãs para o resto da Europa, com início no século XIV e ao longo dos séculos seguintes), é natural que a língua romani conheça profunda variação dialetal, mantendo, porém, características gramaticais específicas. (...)»
I. Há alguns meses, numa intervenção do escritor guineense Tony Tcheka, que defendia uma maior circulação de bens culturais no espaço da CPLP, ouvi-lhe esta frase lapidar: «Não se pode amar aquilo que não se conhece.» Trata-se de uma forma bem mais inspirada de dizer aquilo que tento fazer compreender aos meus alunos há décadas e que posso enunciar como: a ignorância é a mãe de todos os preconceitos.
Celebrou-se a 8 de abril o Dia Internacional das Comunidades Ciganas (International Romani Day), instituído em 1971 pelo I Congresso Mundial Romani (Orpington, Reino Unido) e posteriormente reconhecido pela Organização das Nações Unidas, com o objetivo de celebrar a cultura romani e promover o reconhecimento dos problemas que este povo enfrenta em diversos países. O I Congresso contou com participantes de 29 países; o IX Congresso decorreu em Riga, Letónia, em 2015, e contou com participantes de 25 países.
Da história, língua e cultura das comunidades ciganas pouco ou nada conhecemos e essa ignorância é o principal alimento dos profundos preconceitos enraizados na nossa sociedade relativamente aos membros desta etnia.
O povo romani é originário do norte do subcontinente indiano, especialmente das regiões de Rajahsthan, Haryana e Punjabe, e terá chegado à Europa Oriental por volta do século XIV.
Considera-se que a língua romani é uma macrolíngua, i.e. um grupo de várias línguas estritamente aparentadas mas que se consideram uma única língua, neste caso, por motivos étnicos e culturais. Faz parte da grande família da línguas indo-europeias, como a maioria das línguas europeias, e pertence ao ramo das línguas indo-arianas, indo-áricas ou índicas, de que fazem também parte, e.g., o sânscrito, o hindi, o gujarate, o urdu ou o concani, este falado em Goa. A história remota do romani encontra-se completamente indocumentada e o estabelecimento da sua genealogia decorre fundamentalmente dos estudos de linguística comparativa que caracterizaram a investigação sobre as línguas no século XVIII europeu. A primeira atestação da língua é de 1542.
Tendo em conta a grande dispersão geográfica do povo romani (sobretudo a partir da região dos Balcãs para o resto da Europa, com início no século XIV e ao longo dos séculos seguintes), é natural que a língua romani conheça profunda variação dialetal, mantendo, porém, características gramaticais específicas. Uma das classificações dos dialetos do romani é a adotada pelo The Ethnologue, que considera três grandes grupos, os dialetos dos Balcãs, os do Norte (abrangendo vastas zonas do norte e centro da Europa) e os dialetos vlax (falados sobretudo nas regiões do sudeste europeu, incluindo a Grécia, a Bulgária, a Roménia, a Ucrânia ou a Albânia).
Em 2015, a UNESCO instituiu o dia 5 de novembro como o Dia Mundial do Romani, como forma de promover a língua e a cultura, o seu estudo, assim como o bem-estar do povo romani.
O caló, língua falada pelas comunidades ciganas da Península Ibérica, é uma língua mista, conhecida como para-romani no âmbito da linguística romani. Dela se considera a existência das variedades catalã, galega, espanhola e portuguesa.
A ignorância é, de facto, uma condição muito triste, até porque saber é poder. Mais triste ainda (e inaceitável e revoltante) é usar a ignorância dos outros para promover o poder próprio, instigando o preconceito, a discriminação e a intolerância. Lutemos, pois, todos os dias das nossas vidas, contra a ignorância e contra os que nela baseiam o seu poder.
II. O caló português ou lusitano é a língua falada pelos ciganos portugueses no seio das suas comunidades ou quando não querem ser compreendidos, funcionando assim como uma gíria. Constitui uma variedade específica do caló ibérico ou para-romani, língua de mistura que conta com variedades específicas catalã, espanhola, galega e brasileira. Sobre o caló português parece ter-se abatido um manto de silêncio e escuridão – e.g., a nível nacional, a Porbase devolve 16 resultados para "calo", escritos em português e publicados em Portugal, dos quais apenas um é sobre o caló; os RCAAP (Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal) devolvem sete resultados para "caló+cigano", seis deles brasileiros; a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, ed. Século XXI, não inclui sequer entrada para "caló"; a nível internacional, e.g. o termo não consta do atlas das línguas em perigo da UNESCO, na Glottolog aparece a entrada "caló português" como hipónimo de "caló", mas sem nenhuma outra informação; a OLAC remete para o The Ethnologue (de acesso pago), que situa o caló apenas em Espanha.
Aquando da introdução do Português Língua Não Materna no currículo (2006-2007), ter-se-á questionado se os alunos ciganos portugueses deveriam ser inscritos nesta disciplina, acredito que por se considerar a possibilidade de a língua portuguesa ser para eles uma segunda língua. Terá sido neste contexto publicado um artigo intitulado "Os gajos não falam calão. O que falam os portugueses ciganos então?" (P. F. Pinto, 2008, Palavras, n.º 34), muito completo e bem documentado, leitura obrigatória para quem se interesse por estas questões, disponível nos RCAAP. Além de apresentar uma boa síntese da história do caló ibérico, descreve algumas características do português falado pelos alunos ciganos e defende a manutenção da inscrição destes alunos na disciplina de Português (língua materna).
A invisibilidade do caló português impressiona, sobretudo quando comparada com as diferentes variedades do caló de Espanha, para as quais se encontra significativa bibliografia disponível, apesar de ser comum a ideia de que o caló estará agonizante, e.g. a avaliar por diversos artigos publicados na revista Romani Studies (Univ. de Liverpool), onde não ocorre um único artigo sobre o caló português.
O caló português provavelmente não se encontra ainda extinto, mas estará seguramente em situação de grande vulnerabilidade. Não é difícil acreditar que as razões para tal sejam externas, a saber, a repressão do seu uso e a discriminação exercida sobre os ciganos, nomeadamente por autoridades do nosso país, em diferentes épocas. O mais extraordinário, porém, é perceber que esta invisibilidade é promovida pela comunidade cigana, ou por alguns dos seus representantes, como forma de preservação da sua identidade. É esta a conclusão a retirar da polémica reportada no artigo "Para que ninguém entenda o caló", assinado por Leonete Botelho (Público, 23/10/2000).
Não me deterei sobre os efeitos perversos da recusa de integração e do secretismo à volta da língua e da cultura sobre a comunidade cigana; disso falarão outros com mais propriedade. Uma língua como o caló, ainda por cima ágrafa, que não é falada nem conhecida, tem a morte e o esquecimento como destino certo. Poderá alguém querer que do caló português o único vestígio venha a ser o calão, esse registo linguístico que a sociedade rejeita por considerar vulgar, grosseiro, rude e até obsceno?
Sim, a ignorância é mesmo a mãe de todos os preconceitos.
Cf. Língua Portuguesa discriminada na Guiné-Bissau + Quando o preconceito passa pelas nossas redes sociais + Quando a vida dos ciganos era quase uma impossibilidade + Portugueses ciganos: como se forjou uma cultura de resistência + Portugueses ciganos. O que mudou depois do 25 de Abril de 1974 + Ciganos há 500 anos no país: uma etnia marginalizada + Ciganos: erradicar preconceitos, numa sociedade contaminada pelo ódio + O conhecimento do genocídio dos ciganos é vital para superar o preconceito e fortalecer as nossas democracias
Crónicas da linguista linguista e professora universitária Margarita Correia, transcritas, coma devida vénia, do Diário de Notícias, com as datas de 11 e 18 de abril de 2022.