«(...) Em Portugal, que eu saiba, a interrogação invertida nunca foi expressamente protegida, ainda que continuasse a ser praticada, e com o passar do tempo quase se perdeu. (...)»
De tempos a tempos perguntam-me por que bulas uso o ponto de interrogação invertido no início de frases que terminam em pergunta. Um ou outro leitor vai mais longe e questiona o meu patriotismo linguístico, atribuindo o sinal de pernas para o ar exclusivamente à tradição espanhola. ¿Que tenho, então, a alegar em minha defesa?
Vejamos.
O ponto de interrogação invertido foi usado, pelo menos desde o século XVIII, em várias línguas europeias, entre elas o Português, o Castelhano, o Catalão, o Francês, o Italiano, mas já muito antes era encontrado em originais peninsulares, verbi gratia no vernáculo renascentista português. O seu uso foi corrente em longas sentenças ou em textos densos, muitas vezes de índole teológica ou filosófica, avisando previamente o leitor de que a frase que começou a ler vai desembocar numa interrogação.
Este instrumento tornou-se particularmente proveitoso nas escolas, por não deixar dúvidas sobre a entoação que nos exercícios ditados devia ser dada a uma determinada frase. Sem o ponto de interrogação invertido no início da sentença, o leitor arriscava-se a só a meio dela se aperceber de que, afinal, se tratava de uma formulação interrogativa.
Mas a preguiça é madrinha de todas as línguas: por preguiça comemos as sílabas, por preguiça descaímos para a aférese, a síncope e a apócope, para a assimilação e para a metátese. Por maioria da razão, o ponto de interrogação invertido e o seu irmão-gémeo de exclamação foram caindo em desuso. Em 1754, a Real Academia Española consagrou os proveitosos sinais nas suas Actas, recomendando-as ao Estado e ao Ensino – e por isso permaneceram no código cartorial castelhano. Em Portugal, que eu saiba, a interrogação invertida nunca foi expressamente protegida, ainda que continuasse a ser praticada, e com o passar do tempo quase se perdeu.
Alexandre Herculano foi um dos poucos que continuaram a servir-se desta bengala providencial.
A reforma ortográfica de 1911, com o seu intuito simplificador, varreu da nossa escrita o y, o ph, o l dobrado e o ch lido como qu. Escusado será dizer que a interrogação invertida foi na enxurrada e o seu uso popular praticamente desapareceu. Conservou-se, porém, na Literatura, em prosas de Vitorino Nemésio e Aquilino Ribeiro, por exemplo. E o filólogo Álvaro Carmo Vaz, meu velho amigo já falecido, goês orgulhoso da nossa Língua, que durante anos assinou uma coluna de Linguística no T&Q, reconheceu à interrogativa invertida a digna função de «indicar que a entoação em crescendo devia começar com o principio do texto» (Linguística Portuguesa I, p. 33, 1983).
Andava o pobre sinal em bolandas, mas ainda assim disponível para quem dele quisesse servir-se, quando a conferência Interacadémica de Lisboa para a Unidade Ortográfica da Língua Portuguesa, presidida pelo Sr. Júlio Pim Dantas Pum, se pronunciou em Agosto de 1945 pela «abolição das formas invertidas do ponto de interrogação e do ponto de exclamação». E em Dezembro do mesmo ano, pelo Decreto n.º 35 228, os Srs. Óscar Carmona, Oliveira Salazar e José Caeiro da Mata confirmaram o parecer, especificando — para não restarem dúvidas sobre o alcance do diktat — que «não se faz uso das formas invertidas (¿ e ¡), para assinalar o início de uma interrogação ou de uma exclamação, sejam quais forem as dimensões destas». Ironicamente, nesse ano, ainda nas transcrições dos debates da Assembleia Nacional se usava em abundância a interrogativa invertida.
Em defesa do uso deste nobre sinal invoco, pois, a antiguidade histórica, a legitimidade linguística, a inegável utilidade prática e até – permitam-me a nota de humor – um certo pergaminho de «vitima do fascismo»...
Senhores juízes, ¿estou perdoado?
Artigo do jornalista português Jorge Morais, transcrito, com a devida vénia, do semanário Tal&Qual, n.º 119 – II Série, de 13 a 19 de setembro de 2023.