«Hoje utiliza-se a palavra génio por tudo e por nada. É o génio que fez uma descoberta científica. É o escritor que decidiu ser génio. Ou o tenista que teve uma performance genial. Enfim, uma lista infindável de gestos restritos a personalidades iluminadas.»
«É um génio! O tipo é um génio, ouviste?», gritava-lhe ele, fazendo com que não só ela ouvisse, como quem estava à volta, apesar de estarmos num dos lugares mais improváveis para escutar conversas — no meio de uma multidão excitada, durante o concerto de Nick Cave e dos Bad Seeds, no último fim-de-semana no Porto. Foi num intervalo entre canções, daí que a exclamação dela, apesar de mais serena, também ter sido audível: «Génio, o tanas! É apenas alguém como nós e é por isso que é tão bom!»
Ri-me. Porque é mesmo isso. Na tentativa de enaltecer os que apreciamos, deslocamo-nos com facilidade para a sedutora narrativa da inspiração divina e do génio absoluto inalcançável. Esquecemo-nos que, mesmo quando não alcançamos completamente o que nos faz aderir a algo, é um esboço de familiaridade que nos faz ter vontade de saber e de aprofundar mais. A proclamação de genialidade é como renunciar ao compreender. É idealização. No caso de Nick Cave não é difícil de perceber o misto de protecção, admiração ou de rejeição, que pode convocar. Confronta-se a ele próprio, e nesse gesto, a nós, com muito do que vamos adormecendo com o tempo, o quotidiano, o pragmatismo, o conforto – a relação com o espírito, a transcendência (diferente de acreditar num Deus) ou a morte.
A sua arte emociona porque cremos reconhecer nela uma faceta de nós, que por vezes parece inacessível, mas que sabemos estar lá, nem que seja sob a forma de desejo. É por isso que passamos o tempo a dizer que o mais importante da vida é o amor, os afectos, a solidariedade, o saber, a cultura, mesmo se depois acabamos por praticar exactamente o contrário.
O mito do génio cria uma barreira de inatingibilidade. Ele está no cume, na sua redoma. Não gera verdadeira correspondência. A criatividade não é magia. É fazer algo de que se gosta e com o qual nos identificamos, com dedicação, justeza, técnica, sistematização, erros e tentativas de os suplantar, lidar com frustrações, avanços e recuos, imperfeição e transformar tudo isso em algo que nos faça sentido e gere ressonância ou comunicação.
Não é algo imune a influências, descendências ou actividade colectiva. É o contrário. Encontrar uma voz implica adoptar e abraçar filiações, comunidades e discursos. Sabemos tudo isto, mas hoje utiliza-se a palavra génio por tudo e por nada. É o génio que fez uma descoberta científica. É o escritor que decidiu ser génio. Ou o tenista que teve uma performance genial ou o cineasta que teve um lampejo de génio. Enfim, uma lista infindável de gestos restritos a personalidades iluminadas.
Há muitas teorias sobre esta epidemia. Há quem sustente que a ideia de criação como algo mágico tem séculos, tendo sido uma reacção à tese de que todos os seres humanos são iguais, o que gerou incómodos nos homens brancos europeus, que se viam a si próprios como melhores do que os restantes. Terá sido aí que a noção se foi difundindo, não parecendo ser mera coincidência que os supostos génios sejam figuras como Mozart, Newton ou Da Vinci. Ou seja, a narrativa da genialidade foi uma forma de conservar os mitos da supremacia branca e do patriarcado.
Hoje a coisa parece mais disseminada, talvez porque todos querem afirmar a sua individualidade. Toda a gente quer ser singular, distinta e única, mesmo sabendo que por definição todos o somos. Não existem pessoas iguais. Mas há que reafirmá-lo a toda a hora. Ninguém quer cá confusões, de tal maneira que por vezes nos esquecemos que, despidos das máscaras sociais, somos muito mais semelhantes, nas aspirações ou nas fragilidades, do que estamos dispostos a aceitar. Até nisso não há grandes milagres. As emoções, ou o pensamento, também se exercitam.
O génio é a imagem de um operador de maravilhas. Aquele que faz o que mais ninguém faz. O problema é a ausência de realidade. A magia depende mais da plateia e do efeito de a impressionar do que do real.
Crónica publicada no jornal Público, em 19 de junho de 2022