« (...) Para quem não entendeu nada do que acabei de dizer, tem a ver com isso de os meus colegas homens dizerem "sou músico" sem qualquer problema e eu não conseguir dizer "sou música" sem sentir, no mínimo, alguma estranheza, para além de na maior parte dos casos não ser compreendida à primeira. (...)»
Sempre que tenho de preencher algum formulário oficial no qual é pedida a minha profissão, bato de frente com o problema da flexão de género na língua portuguesa e do uso prejudicial do masculino genérico, que tem o efeito político, social e psicológico de excluir as mulheres.
Para quem não entendeu nada do que acabei de dizer, tem a ver com isso de os meus colegas homens dizerem «sou músico» sem qualquer problema e eu não conseguir dizer «sou música» sem sentir, no mínimo, alguma estranheza, para além de na maior parte dos casos não ser compreendida à primeira. É sempre mais fácil dizer que sou cantora. No entanto, essa definição representa apenas uma parte do meu trabalho, excluindo tantas outras facetas que me são tão caras. Isso é muito problemático. Produtora musical, compositora, letrista, guitarrista, arranjadora... Confesso que não gosto da enumeração mas muitas vezes é a única maneira de visibilizar um trabalho onde as mulheres ainda têm tão pouco espaço e reconhecimento, onde ainda há tão poucas referências, onde ainda é tão dificil sermos respeitadas, contratadas, bem pagas.
No que diz respeito à minha profissão, um «sou música» deixar-me-ia satisfeita. Mesmo que pareça que estou a identificar-me presunçosamente com a "canção" ou com a Música com letra maiúscula. Mas, se virmos bem, no fundo toda a mulher música é, ou tem de ser, maiúscula e valente num meio ainda tão masculino, masculinizado e, digamos francamente, machista. Não olhes, senão vês. Está em todo o lado.
Nós, mulheres músicas, precisamos reivindicar a linguagem, ocupar espaços, reinventar alianças e manter a cabeça acima da linha da água, apesar de tudo. Seremos enumeração, seremos maiúsculas: só não nos permitiremos mais deixar de ser inteiras.
P. S. — Para mais informações, leiam o livro Mulheres Invisíveis: Como os Dados Configuram o Mundo Feito para os Homens, dd Caroline Criado Perez.
Texto publicado no Facebook da autora no dia 28 de julho de 2021.