«A língua é um bem enriquecedor» - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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«A língua é um bem enriquecedor»
«A língua é um bem enriquecedor»

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Elías Torres Feijó, vice-reitor da Universidade de Santiago de Compostela, acredita que a aproximação da Galiza ao mundo lusófono trará vantagens económicas

É professor de Literatura e Cultura Portuguesa da Universidade de Santiago de Compostela, da qual acabou por tornar-se um dos vice-reitores. Criou e dirige o grupo de investigação «Galabra», que estuda o relacionamento cultural da Galiza com os restantes países de língua portuguesa. Falamos-lhe na capital galega, quando se apresta a rumar a Lisboa, onde será arguente de tese no ISCTE.

Surpreende vê-lo num alto cargo universitário. Apetece dizer que o rebelde se deixou apanhar pelo sistema. Para um crítico da cultura, consciente das estruturas e dos processos, há-de ser incómodo.

Isso de rebelde é fama... Sempre fui um «pactista». Há uma lógica do pacto, como há, por vezes, uma lógica da resistência. Como estudante, fundei ou impulsionei grupos de actuação cultural pioneiros na Galiza e durante vários anos dirigi acções resistentes. Penso que, neste momento, e mantendo princípios de lógica e honradez, a minha intervenção deve ser esta. E estou rodeado de pessoas que me advertirão, quando necessário. Sim, programo a minha actuação, obrigo-me à reflexão sobre ela. Não reduzo a acção cívica ao colar de cartazes, nem admito que me digam que «pensar» não é trabalhar.

Ao que se sabe, você não é um nostálgico da Grande Galiza, aquela que ia até ao Douro, nem um idealizador de Portugal. Também não se lhe conhecem teses conspirativas, tipo «é tudo trama dos fascistas». Como é o seu projecto para a Galiza?

Sou, peço-lhe que acredite, um nostálgico das origens, gosto da melancolia que me toma quando percorro Portugal. Mas essa visão a-histórica, esse «ensonhamento», não os incorporo no meu actuar político. As teses conspirativas, também as ponho de parte. Não me ajudam a pensar. Houve, e há, não duvido, uma conspiração de submissão da Galiza. Mas acho irresponsável darmos, quando falhamos, as culpas a um inimigo exterior. O meu projecto para a Galiza, em termos culturais, é que os galegos vivam bem, que aumentem a sua qualidade de vida. E acredito que é um acréscimo dela os galegos se relacionarem, a partir dos seus próprios instrumentos, com o mundo lusófono. Já em termos políticos, julgo que devemos aspirar à soberania, e à soberania nacional, aquela que permite à comunidade galega decidir, a qualquer momento, o que quer fazer, por exemplo em matéria económica, mas também se quer manter, ou desenvolver, o seu vínculo com o Estado espanhol, ou se quer diluí-lo.

Para um português, uma soberania que não for independente é pouco perceptível.

Claro, imagina um Portugal soberano desde o século XII. Não percebe que foi a historiografia, de Fernão Lopes ao salazarismo, que o convenceu disso. Com imensa habilidade, Fernão Lopes tenta justificar o injustificável, o assalto ao poder pelos apoiantes de D. João I, quando o trono pertencia a Leonor Teles, essa que perigosamente namorava um galego. Mas o marido, D. Fernando, tinha feito cunhar moeda na Corunha, o que tinha tremendo significado. Não, mesmo em Portugal, a soberania não significou sempre independência. Simplesmente, os portugueses, como nós todos, aprendem a única História disponível: a dos vencedores.

A nossa relação com a Galiza, já se disse, é um novelo de mal-entendidos.

E é. Temos uma relação muito complexa. No fundo, o determinante é a imagem que criámos uns dos outros. A Galiza perdeu o seu poder político em fins da Idade Média e foi tomando consciência da sua marginalidade no contexto da Espanha. Ora, um pobre precisa doutro mais pobre ainda, e Portugal estava à mão. Para afirmar-se rico, a um galego, é-lhe importante ser espanhol, usar a Espanha para diferenciar-se dum português. E a contrapartida: ao exprimir-se em galego (como sabe, eu considero galego e português variantes duma mesma língua, só que um está codificado, fixado, normalizado e o outro não...) aceita aproximar-se a Portugal. Só que isto exige muito de alguém que viu, durante séculos, a sua inferioridade associada ao idioma. Conto-lhe uma história exemplar. Há tempos, uma amiga minha viu uma velhinha, sua familiar, deitar ao lume um pente para o linho. Querendo salvar o que considerava, e era, uma jóia, perguntou à mulherzinha como podia ela fazer aquilo. Resposta da senhora: «Minha filha, foram muitas noites e muitos frios.» E o pente, símbolo da sua miséria, ali ardeu. O que quero dizer é isto: para tornar o galego-português língua nacional da Galiza, é preciso fazê-lo, agora, símbolo de riqueza, de novas oportunidades.

E por isso diz que o galego tem de trazer aumento de qualidade de vida.

Exacto. A língua é um bem enriquecedor, já que nos faz sentir bem. Por exemplo, ao permitir-nos funcionar dentro duma comunidade. Isto é óbvio, mas é fundamental. Se não conseguires que o uso dum idioma traga utilidade, que garanta mais bem-estar económico, cultural ou outro, o projecto fracassará. E por isso sou reintegracionista. Porque pretendo que os galegos tenham acesso a mais bens culturais e económicos, vindos do contacto com o português e com os restantes países de língua portuguesa, a começar por Portugal. E isto graças a um utensílio que os galegos já possuem, o seu idioma, não lhes custando nada da sua própria identificação colectiva, e antes pelo contrário, associando-o a instrumentos de modernidade e de relançamento das suas próprias vidas. E se não for assim, não temos o direito, do ponto de vista da ética política, de efectuar uma normalização linguística. Ora bem, só uma normalização como os reintegracionistas a desejam permite isso: que, graças à sua exacta condição de galegos, as pessoas possam consumir, transferir e aceder a imensos bens de que hoje estão privadas. E, assim, uma capacidade já existente é posta ao serviço de novas, e enriquecedoras, necessidades. Isso é, se me permite, fazer da virtude necessidade.

Só que isso vai obrigar um galego a aproximar-se de algo que aprendeu a rejeitar, por inferior.

Bom, repare. No conjunto de distinções e coincidências entre um galego e um português, o idioma joga um papel bastante secundário. Muito mais decisivos são a História, o modo como se constroem as identidades colectivas, o modo como cada um se pensa. Na Galiza vivemos um processo de reconstrução, de recuperação colectiva, enquanto Portugal pode ver-se, e vê-se, tranquilamente, como um resultado. Isto torna difícil para um português compreender o que se passa hoje na Galiza. Torna-se-lhe difícil, por exemplo, valorizar que estejamos a recuperar na Galiza a nossa língua comum, a limpá-la de castelhanismos, a afiná-la como instrumento. E que, se hoje soamos tanto a castelhano, não é porque o queiramos, antes é afincadamente que trabalhamos no contrário.

Todo esse empreendimento, essa revolução cultural reintegracionista, que poderá conquistar a sociedade galega, mas só ao fim de uma série de conflitos e de rejeições... será ele defensável?

Num esforço destes vai muito investimento colectivo, sim, muito dinheiro. Facto é que, desde há dezenas de anos, quantias públicas galegas muito consideráveis são empregues, esbanjadas é o termo, numa normalização linguística, aliás de orientação «isolacionista», que acumula insucesso atrás de insucesso, e em que, na mais pura imoralidade política, nunca ninguém foi responsabilizado. Ora, os reintegracionistas puseram até hoje em circulação o seu próprio capital, não o dos outros, menos ainda o da Comunidade Galega. E puseram-no ao serviço de todos, já que esse seu esforço vai significando um travão à dissolução do galego no espanhol. Pode estar certo: as medidas de norma linguística tomadas em 2003 pela Real Academia Galega, que aproximaram um pouco mais o galego e o português, só se entendem pela obstinada pressão do reintegracionismo. No instante em que um movimento reintegracionista venha a dirigir a sociedade galega, ele terá a mesma, ou mais, legitimidade para pôr em andamento o programa que defende.

Há, em todo este processo, um papel para Portugal?

Do ponto de vista institucional, seria lógico que Portugal viabilizasse, através de Espanha, a representação da Galiza na CPLP. Mais em geral, Portugal deveria rever o relacionamento com as nações que compõem o Estado espanhol, ultrapassando os receios que nitidamente tem. Quanto à sociedade portuguesa, depende do interesse que tiver. Até este momento não o mostrou.

Entre as elites intelectuais portuguesas, a Galiza não faz parte do imaginário.

Claro, não lhes traz nenhum lucro, cultural ou outro. Falo em termos objectivos, não estou a moralizar.

Como poderia começar a Galiza a tornar-se uma referência para os portugueses?

Os portugueses são gente normal, e gostam de viajar, de passar algum tempo fora. A Galiza oferece algo único: estar-se fora, mas não de todo. Será para eles um lugar diferente, com um mínimo de exotismo, mas estarão um pouco como em casa. Esta experiência duma inesperada proximidade, eu acredito que seja um magnífico começo. Depois há-de vir o resto.

Fonte

Sobre o autor

Fernando Venâncio (Mértola, 1944) formou-se em 1976 em Linguística Geral, na Universidade de Amesterdão. Aí se doutorou em 1995, com um estudo sobre as «ideias de língua literária em Portugal no século XIX». Publicou estudos sobre «brasileirismos em Portugal», as reformas ortográficas e o Português Fundamental. Tem escrito no Jornal de Letras (JL), no semanário Expresso e na revista Ler. É autor dos romances Os Esquemas de Fradique (1999) e El-Rei no Porto (2001) e da antologia Crónica Jornalística. Século XX (2004). A sua mais recente obra é Assim Nasceu uma Língua (2019).