O galego e o português — que relação de parentesco? E que implicações institucionais estão envolvidas nesta reflexão? É o tema deste artigo de Fernando Venâncio.
Nenhum linguista português afirma hoje a identidade de português e galego. Alguns, e importantes, como Ivo Castro e Clarinda de Azevedo Maia, proclamam mesmo, alto e bom som, que são línguas diferentes. Observa-se, até, uma geral retracção em afirmar que elas tenham sido, algum dia, a mesma.
Quero admitir que um ou outro linguista, lá no íntimo, pense diferentemente. Mas é irrelevante. Igualmente irrelevantes são simpáticas afirmações nalguma palestra ou cavaqueira, mormente se fora de portas. Decisivo é aquilo que se defende em casa e no papel. Um texto de Helena Mira Mateus, «Galego e português: uma só língua?», aparecido em 1986 numa obscura revista brasileira, afirmava a identidade dos idiomas. Mas nunca foi recolhido nas várias antologias da autora, que também nunca mais se pronunciou a tal respeito.
Que penso eu próprio da questão, supondo que tal interessa? A minha posição na matéria é frontalmente dúplice. Digo dúplice, não ambígua. Considero que galego e português são, ainda e sempre, o mesmo idioma. Mas considero, igualmente, que essa identidade, sendo verdadeira, não é óbvia. Por isso trabalho em conseguir demonstrá-la. Não é uma posição cómoda (mas longe de mim pedir ‘compreensão’!). Muito simplesmente espero, um dia, ver mais claro.
De momento, podemos constatar isto: jamais alguém demonstrou a identidade, ou a não identidade, de galego e português. Isto significa que afirmar uma ou outra sem reservas é da ordem da crença ou da vontade, matéria de ‘fé’ ou opção ‘política’, nada tendo, pois, a ver com a ciência. Numa recensão da História da Língua Portuguesa de Ivo Castro, de 2006, formulei-o assim (cito de cor): «Enquanto os historiadores da língua não identificarem e descreverem o ponto de ruptura entre galego e português, os dois continuarão a ser, cientificamente, o mesmo idioma.» Era um desafio. Ainda não obtive resposta.
Mas é, atenção, um desafio condicionado. O seu reverso vale igualmente. Por isso o desafio pode, e deve, ser lançado a quantos, na Galiza, já se instalaram na identidade de galego e português. Uma afirmação dela sem reservas é tão leviana como a sua rotunda negação. Ambas são matéria de fé, são opção política, uma e outra se prestam a toda a casta de oportunismos e de projecto pessoais.
Sendo assim, os linguistas portugueses e a ortodoxia galega, por um lado, e os lusistas galegos radicais, por outro, passam o tempo a desclassificar-se mutuamente. É, entenda-se bem, uma desclassificação ‘objectiva’, já que entre eles contacto não há.
Mas existe uma diferença. Enquanto para os glóticos lusos e os normativos galegos a aproximação cultural e linguística dos dois países não é, de modo algum, um objectivo, já os radicais galegos afirmam dia e noite almejar a imersão da Galiza na «Lusofonia». Deveriam, pois, ter sido eles a tentar persuadir os outros dois grupos de que, sim, senhor, galego e português são o mesmo idioma.
Ora, jamais percebi rasto de qualquer tentativa de ‘persuasão’, menos ainda de qualquer proposta de ‘busca conjunta’. E essa ausência de esforços destrói pela base qualquer credibilidade. Sim: quem deseja ser reconhecido numa comunidade dá um mínimo de explicação, não proclama teses.
Simplesmente, a recente institucionalização do radicalismo galego torna o entendimento mais longínquo que nunca. Hoje, já não se afirma somente uma identidade idiomática sem reservas. O radicalismo galego passou o Rubicão. Da simpática, embora cientificamente infundamentada, afirmação da identidade de galego e português, passou-se à proclamação do «português» como «língua da Galiza». Não estamos já no campo da arbitrariedade científica, mergulhámos em pleno desvario mântrico. Demonstrar qualquer asserção, torná-la pelo menos aceitável, deixou definitivamente de preocupá-los. Sugerem, mesmo, que a prova de que «o português é a língua da Galiza» está suficientemente dada: não escrevem eles próprios português?
Com tudo isto, não dramatizemos. A provocação, mesmo enroupada em pompas institucionais, só atinge quem se deixar acuar por ela. Mais do que isso: o prejuízo está, para já, limitado. O grupo aventureiro não tem, por enquanto, interlocutor algum, favorável ou não, em Portugal. (Aguardam-se vivamente os esclarecimentos de Carlos Reis ou Malaca Casteleiro sobre a sua recente conversão ao «português da Galiza»). Em suma: Portugal de nada se apercebeu ainda. Quando souber de enlevos por uma «Lusofonia» que deixa os portugueses indiferentes, achará o caso folclórico, e passará adiante. Quando souber duma entusiástica adesão ao Acordo Ortográfico, há-de sorrir do êxtase galego por algo que o geral dos portugueses considera absurdo.
Mas há um perigo, no horizonte. As coisas mudarão quando, em Portugal, o lobby cultural pró-espanhol se aperceber de que, a sério, «A língua portuguesa é a alma da Galiza», e mais slogans inventivos que entretanto surgirem. Aí, esse lobby, que não brinca, e que é declaradamente antigalego, há-de saltar à arena e vamos ter sarilho. A «questão galega», que no Portugal moderno nunca tomou forma, será então posta, e com o pior dos pretextos. Os radicais galegos terão tido, assim, os seus quinze minutos de glória. Espanha e Portugal vão erguer a taça em novo festejo. E todos haveremos voltado à estaca zero.
Aproveite, pois, a Agal este interregno de paz para relançar o seu utilíssimo trabalho. Lançando pontes: para o resto da Galiza, para Portugal. É de pontes que precisamos. Pontes sólidas. Isto é, ousadas e realistas.
in Portal Galego da Língua, 25 de Outubro de 2008