«A adopção de algumas palavras como indiscutíveis nos discursos políticos nunca é inocente. São sempre signos de certas políticas e, neste caso, é a crise económica que [lhes]serve que serve de pretexto». Artigo publicado no jornal “Público” de 11 de agosto de 2012.
Sustentabilidade é uma palavra que há poucos anos era pouco usada. O aumento gradual do seu uso — hoje diário — remete para o início da crise no seu sentido lato. Quase de repente “ser ou não ser sustentável” passou a dominar os discursos políticos no que se refere ao Estado e às empresas. Nada é sustentável: o Estado social, as reformas, os empregos, as pequenas e médias empresas que abrem falência e fecham, a actividade das instituições culturais mede-se pelos mesmos parâmetros, etc. Há no entanto algumas coisas que se mantêm sustentáveis e idênticas desde 1980 até hoje: o aumento da diferença de riqueza entre os muito ricos e os muito pobres. Segundo Alain Badiou: «Os 20 % mais pobres da população global e os 20 % mais ricos. Em 1960, a parte mais rica tinha um rendimento 30 vezes maior do que a parte mais pobre. Em 1995, esta diferença tinha aumentado para 82 vezes mais», escreve em “The Century” de 2007.
Estes dados estão seguramente ultrapassados para pior. Vem isto a propósito de mais um excelente artigo de José Vítor Malheiros [ JVM]: “A dignidade não é sustentável?”, do “Público”[de 7 de Agosto]. O título do artigo joga propositadamente com o choque entre as duas palavras — dignidade e sustentabilidade —, que não pertencem às mesmas esferas da actividade humana. São conceitos incomensuráveis. É justamente o alargamento da aplicação da palavra sustentável que corresponde a um programa político, tendente a agravar o fosso entre os ricos e os pobres, e o alargamento do número global de pobres. JVM chama a essa expansão dessa terminologia «o discurso de defesa da desigualdade crescente» e dá um exemplo: «O advogado António Lobo Xavier levava a desfaçatez ao ponto de declarar que a redução das desigualdades sociais não era ‘sustentável’ e dizia que a relativa redução das desigualdades durante dois anos do governo Sócrates teria provado isso mesmo, pelo descalabro financeiro que teria provocado.» Este é o núcleo da argumentação da direita — “caceteira”, como o autor lhe chama — a favor do ataque feroz aos rendimentos da larga maioria das populações (chamam-lhe “reformas”) — aspecto sobre os quais que o artigo citado mostra dados esclarecedores.
A adopção de algumas palavras como indiscutíveis nos discursos políticos nunca é inocente. São sempre signos de certas políticas e, neste caso, é a crise económica que serve de pretexto para a direita “caceteira” aplicar o seu programa real: aumentar as desigualdades sociais, aprofundá-las nas duas direcções: mais para os já muito ricos, menos para os que já têm muito menos. Uma série de outras palavras desaparecem, excepto de alguns artigos de descontentes ou lúcidos ou voluntaristas resistentes: dignidade, igualdade, justiça social.
É por isso que, quando ouço a palavra «sustentabilidade», não puxo da pistola, como Goebbels fazia quando ouvia falar de cultura, porque não tenho pistola. Mas sei qual é o programa político que esta simples palavra serve e sustenta. «As palavras são importantes», dizia, num dos seus filmes, Gianni Moretti.
In Público de 11 de agosto de 2012. Manteve-se a norma ortográfica de 1945, seguida pelo jornal.