«Parelha de tendência do povo rude para considerar a sua língua como a única de gente, existe nele uma outra, contraditória com esta: é a facilidade infantil com que o povo esquece a própria língua, mal entra em contacto com outra, e logo passa a aprender e a estimar esta com prejuízo da sua. [...] Um deles representa a tendência purista exagerada e fechada, desejosa de fazer voltar a linguagem a modelos antigos e já mortos, tratando-a como se ela fosse uma língua morta – a única língua de gente, digna de ser embalsamada, mumificada [...]. O outro, ao contrário, dá-nos o esquema do homem que a falar, e sobretudo a escrever, se deixa desnacionalizar facilmente, porque não pôde ou não quis aprender bem a sua língua, e por isso a não ama nem respeita.» Texto que reflete sobre a atitude dos portugueses perante a sua língua.
Costumamos dizer familiarmente, e qualquer pessoa simples, franca, chã, sem papas na língua e com o coração ao pé da boca: – É pão, pão; queijo, queijo.
Ao contrário de tantas outras expressões pinturescas do nosso falar, esta frase facilmente se explica por si só. O homem que põe ao léu o que sente e chama às coisas pelo seu nome, sem subterfúgios nem eufemismos, diz pão quando quer dizer pão, e queijo quando quer dizer queijo.
Não há nada mais expressivo, nem mais claro. E no entanto inventou-se e corre mundo uma história, aliás engraçada, para explicar aquela frase: inventou-se que um português rústico, ouvindo um dia falar um francês que chamava pain ao pão e ao queijo fromage, concluíra ser o francês uma língua de trapos, inexpressiva e confusa, que dava às coisas nomes estranhos, arrevesados, e sem nenhuma correspondência razoável com a natureza delas.
– Que vem cá a ser pain? Que vem cá a ser fromage?, perguntava o nosso ingénuo compatriota. Pão, pão; queijo, queijo, assim é que é!...
«Estas duas palavras tupie guarani (diz o general brasileiro Couto de Magalhães, na sua obra O Selvagem) não significavam entre os selvagens que delas usavam senão tribos ou famílias que assim se denominavam. Se no Paraguai qualquer disser guarani nhenhem para traduzir a expressão língua guarani, ninguém o entenderá; porque, para eles, o nome da língua é ava nhenhem, literal: língua de gente. A expressão ava nhenhem, para exprimir a língua falada por eles, mostra-nos que a ideia que tinham das outras é que elas não eram línguas de gente. O mesmo diremos a propósito da língua tupi. Se dissermos a qualquer índio civilizado do Amazonas: fale em língua tupi, ele não entende o que lhe queremos dizer; para que ele entenda que queremos que se expresse na sua própria língua, mester é dizer-lhe:
– Renhenhennhenhemngatu´rupi, literal: fale língua boa pela, isto é: fale pela língua boa.»
Para o selvagem como para o tal português do pão, pão; queijo, queijo – as línguas estrangeiras são, como diz o mesmo general Couto de Magalhães, compostas de sons ininteligíveis, semelhantes ao canto dos pássaros ou aos gritos dos animais. Língua boa, língua de gente, é apenas a que eles próprios falam.
A nossa língua não é decerto a única boa; mas a nós basta-nos que ela seja, como é, uma das melhores.
Parelha de tendência do povo rude para considerar a sua língua como a única de gente, existe nele uma outra, contraditória com esta: é a facilidade infantil com que o povo esquece a própria língua, mal entra em contacto com outra, e logo passa a aprender e a estimar esta com prejuízo da sua.
Isto vem-lhe da simplicidade vegetativa, dos objectivos estreitamente práticos que a fala tem para ele, da mesquinhez do vocabulário e da grosseria da sintaxe que lhe são necessários para transmitir as suas pobres ideias e os seus sentimentos rudimentares.
Um saudoso colega meu – o professor Castanheira, da Casa Pia de Lisboa – contou-me que, tendo emigrado de Espanha para França, em seguida ao desastre de uma guerrilha carlista em que tomara parte, conhecera entre os seus companheiros de emigração e de exílio um cocheiro espanhol, que foi ganhar o pão exercendo em Paris a sua profissão civil. Passados meses, reencontraram-se os dois, e o professor perguntou ao cocheiro pela sua vida, inquirindo principalmente das dificuldades que este teria encontrado para se apropriar da nova língua.
Mas o rude espanhol não tinha encontrado dificuldades nenhumas e, pelo contrário, achava já, no francês, uma linguagem muito mais fácil e muito mais racional do que o seu antigo e abandonado castelhano.
– Basta dizer (explicava ele) que em francês se podem exprimir com uma palavra só muitas coisas que os espanhóis dizem por muitas palavras…
– ?!...
– Por exemplo: nós dizemos eso-es-lo-mismo. Quatro palavras, não menos. Pois em francês é logo de uma vez «sàmètègal» – e pronto.
Para aquele homem simples, «ça m´est égal» era uma palavra só. E igualmente simples são os nossos portugueses do povo dos Açores, que emigram para os Estados Unidos, aprendem logo a falar inglês mascavado e reduzido de que precisam, e, quando voltam, se se lhes pergunta pela sua nova língua, respondem às vezes assim:
– Sim. Lá na América fala-se inglês. É uma língua como a nossa. As palavras que lá têm são as mesmas que as de cá, quási todas. São as mesmas, mas querem dizer outras coisas. Um fósforo não é fósforo, é «mecha» (match); e um vapor é «estima» (steamer)…
Estes dois selvagens iguais e contraditórios – o que imagina ser a sua língua a única de gente, e o que, ouvindo e mal falando outras, as acha sempre iguais à sua e até melhores do que ela – são muito interessantes em si mesmos. Mas são também simbólicos das duas correntes contrárias que sempre se revelam na defesa ou na prática das línguas nacionais.
Um deles representa a tendência purista exagerada e fechada, desejosa de fazer voltar a linguagem a modelos antigos e já mortos, tratando-a como se ela fosse uma língua morta – a única língua de gente, digna de ser embalsamada, mumificada, envolta em faixas, para que se não corrompa o cadáver à menor aragem vinda de fora.
O outro, ao contrário, dá-nos o esquema do homem que a falar, e sobretudo a escrever, se deixa desnacionalizar facilmente, porque não pôde ou não quis aprender bem a sua língua, e por isso a não ama nem respeita, e assim se encontra desarmado para se defender do convívio com outras, pois nem sequer é sensível à beleza individual de cada uma, começando pela sua própria.
in Paladinos da Linguagem, Vol. I, Paris-Lisboa, Aillaud & Bertrand, 1921, pp. 16-22, conforme a norma ortográfica original.