Num artigo do último número do Diário do Alentejo, em que se evocam acontecimentos relacionados com o 25 de Abril — um espaço de memória —, são utilizadas duas palavras e uma expressão cuja história vale a pena conhecer: dias antes daquela data histórica, um repórter francês «aboletara-se» num hotel situado no Rossio [praça de Lisboa], dado ter tido conhecimento de um comunicado em que se afirmava que jovens oficiais portugueses tinham decidido «passar o Rubicão».
Aboletar é um verbo que significa acomodar, instalar, alojar (militares) em casas particulares, dar boleto a. Boleto é o termo que designa a ordem oficial com que se requisita alojamento para militares numa casa particular (termo usado pelo menos desde o século XVIII). Esta requisição nem sempre era bem aceite pelos proprietários das casas. Ora o verbo aboletar-se passou, mais tarde, a designar genericamente a acção de se instalar em qualquer tipo de residência, mas ainda mantém a ideia de instalação abusiva ou não totalmente bem-vinda pelo anfitrião.
Rossio começou por ser um substantivo comum, que designava um terreno plano, de alguma extensão, que era roçado ou fruído em comum pelo povo. Primitivamente, depois de o terreno ser desbastado e reparado, os rossios serviam para se semearem cereais, para hortas ou para pastagem de gados da comunidade. Assim, tornaram-se pontos de encontro e de reunião dos moradores e centros de trocas comerciais, neles se realizando feiras. Os rossios mais conhecidos são a Praça de D. Pedro IV, de Lisboa (o Rossio), e o Rossio ao sul do Tejo ou Rossio de Abrantes, na margem esquerda do Tejo, em terreno muito mais plano e menos pedregoso do que o da sede de concelho (Abrantes).
Quanto à expressão «passar o Rubicão» ou «transpor o Rubicão», ela faz lembrar um dos mais famosos episódios da história de Roma. O Rubicão é um pequeno rio da Itália Setentrional que, no tempo da antiga Roma, separava a Gália Cisalpina da Itália propriamente dita. Por essa razão semiestratégica, estabelecera-se que nenhum general romano pudesse atravessar o Rubicão à testa de forças armadas. Com esta proibição, pretendia-se evitar a ameaça que, por vezes, os generais de Roma, vencedores de guerras de conquistas na Europa, na Ásia ou em África, representavam, com a sua pretensão de se imporem pela força ao poder civil. No ano 49 a. C., Júlio César, vencedor na Gália, pretendia regressar a Roma, mas o Senado, partidário de Pompeu e receando um acto de força, entregou a este e às suas legiões a defesa da cidade, já que Pompeu era um declarado inimigo de César. Este general escreveu, então, uma longa carta ao Senado, em que enumerou os seus serviços à República, repeliu as acusações do seu adversário e se prontificou a resignar o seu comando e a licenciar as suas legiões, se Pompeu fizesse o mesmo, pois não poderia entregar-se desarmado ao seu inimigo, mas o Senado proclamou-o inimigo da Pátria, o que fez com que César, após profunda meditação, tomasse a decisão de atravessar o Rubicão à frente dos seus homens armados, tendo proferido a célebre frase Alea jacta est! («Os dados estão lançados!»). Pompeu fugiu e acabou por ser morto no Egipto. E foi grande a obra governativa de Júlio César.
No caso dos oficiais portugueses referidos no artigo, eles preparavam-se para, com o seu poder de militares, enfrentar uma governação civil, política: assim, estavam decididos a «passar o Rubicão».
artigo publicado no Diário do Alentejo de 15 de Fevereiro de 2008, na rubrica A Vez… ao Português