Entrar para a Academia Brasileira de Letras foi, desde seu início, há 110 anos, objeto de complicadas tramas políticas por João Paulo Coelho de S. Rodrigues
Na tarde de 7 de janeiro de 1911, no pequeno e elegante Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, os membros da Academia Brasileira de Letras se reuniram para, solenemente, assistir à posse de um novo membro, o general Dantas Barreto. A ocasião era de gala, não só pelo local escolhido. Além de uma platéia composta pela alta-roda carioca, havia a cobertura da imprensa e a presença do presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, acompanhado de vários ministros. Contudo, o que se seguiu foi um ataque à memória de um importante fundador da Academia. O professor e jornalista Carlos de Laet, conhecido por sua ironia e estilo polêmico, bem como por seu catolicismo militante e apego à idéia monárquica, teve o encargo de fazer o elogio de Barreto. O ingressante fora eleito para a vaga de Joaquim Nabuco, também um monarquista, deputado, líder abolicionista e escritor de renome. Apesar de sua opção política, Nabuco tinha aceito, dez anos depois da Proclamação da República, um cargo diplomático. Na época, Laet e outros o atacaram, seja por «trair» a causa, seja por não ser confiável dar alto cargo (no caso, a embaixada de Washington) a um político adversário do regime republicano.
Desde 1889 que Nabuco não se envolvia muito em política, dedicando-se a sua outra paixão: escrever. Desta forma, esperava-se que naquela posse de 1911 os discursos tratassem da contribuição de Nabuco para a criação da Academia, de seu papel no movimento abolicionista e de seus escritos. Não foi o que ocorreu. Laet aproveitou a ocasião para dar uma última palavra contra seu desafeto. Definiu a adesão de Nabuco como fruto de sua vaidade, que o teria levado a não resistir aos chamados do poder, abandonando suas convicções. Ao final, Laet justificava a necessidade daquele ataque utilizando-se de uma metáfora militar (carreira do novo imortal e do presidente) que soou de mau gosto para muitos presentes: definiu-se como um sentinela de acampamento que teria visto, à noite, «um chefe querido, que vai levar aos adversários o contingente do seu mérito e talvez o segredo da vitória». Ato contínuo, ele não teria titubeado e teria «fuzilado» o desertor.
Longe de um caso isolado, aquele foi mais um exemplo de vários momentos em que, ao longo de sua história, a instituição foi sacudida pela política.
A Casa de Machado de Assis era (e ainda é) composta de 40 membros vitalícios, só substituídos através de uma eleição quando da morte de um deles. Manda a tradição que aquele que toma posse discurse elogiando seu antecessor. Um acadêmico mais antigo deve também discursar falando bem do novo imortal.
A Academia foi fundada com o fim de receber os mais importantes homens (as mulheres só foram aceitas a partir da década de 70) da cultura brasileira, já definitivamente consagrados por público e crítica. A instituição, portanto, apenas daria acolhida aos que, de uma forma ou de outra, entrariam «para a história» — ou, na sua definição, para a imortalidade. No entanto, ninguém é imortal antes da aprovação da Casa. E essa aprovação muitas vezes não tem a ver com o papel desempenhado na cultura nacional, devendo-se mais a um jogo político.
Mas se na atualidade a cabala política é amplamente reconhecida, inclusive pelos próprios acadêmicos, houve um tempo em que causava embaraços e mal-entendidos. A Academia Brasileira de Letras foi oficialmente fundada em 20 de julho de 1897, mas desde o ano anterior literatos do Rio de Janeiro discutiam a sua formação. Já nesta época embrionária a trama da política se misturava ao debate sobre a instituição.
A idéia de uma Academia de Letras se articulou na redação da mais importante publicação literária da época, a Revista Brasileira, que fazia o papel de ponto de encontro de parte da nata intelectual nacional. Lá se viam figuras como o crítico literário José Veríssimo, o político e romancista visconde de Taunay, o jornalista e antigo líder abolicionista José do Patrocínio, e os escritores Coelho Neto e Machado de Assis, dentre muitos outros. O advogado, jornalista e jurista Lúcio de Mendonça levou adiante a idéia, copiando o modelo da Academia Francesa, criada pelo cardeal Richelieu no início do século XVII e patrocinada pelo Estado. Sua proposta copiava o número de 40 membros, a organização burocrática, a finalidade (difusão da leitura e defesa do idioma nacional). Por fim, Mendonça pedia o financiamento estatal, ainda que a Academia devesse ter independência de decisões e de escolha de participantes.
Apesar de a quase totalidade dos escritores e intelectuais que viviam no Rio de Janeiro aprovar a idéia, um problema extraliterário se interpôs aos planos do grupo da Revista Brasileira. Os anos de 1896 e 1897 se situavam no meio de um conturbado período da recente República proclamada em 1889, o que acabou por atingir em cheio o projeto acadêmico. O regime acabara de sair de sangrentas revoltas lideradas por facções republicanas (como a Revolução Federalista de 1893-1895 no Rio Grande do Sul) e por monarquistas descontentes (como a Revolta da Armada de 1893-1894) e recebia as primeiras notícias de um movimento dissidente de jagunços localizado no arraial de Canudos, na Bahia, visto como uma sublevação monarquista. Na capital da República, um atuante movimento radical agitava, pela imprensa e nas ruas, os ânimos populares contra alvos tão amplos como qualquer pessoa ou instituição ligada à antiga monarquia ou a vagos «interesses» portugueses, tudo em nome da defesa dos brasileiros e da pureza dos valores republicanos. Não eram incomuns empastelamentos de jornais e brigas de rua, muitas vezes o resultado de encontros com maltas de capoeiras ligados à antiga ordem. Como reconheceu Machado de Assis em discurso de 1897, o surgimento da Academia tinha sido marcado por «graves cuidados de ordem pública».
Entre os literatos havia um importante grupo que, se não se definia claramente como monarquista, como era o caso de Carlos de Laet, Joaquim Nabuco ou o visconde de Taunay, ao menos tinha a trajetória ligada ao antigo regime, como o próprio Machado. Outros, ainda que antigos militantes da causa republicana, já se mostravam descontentes com seus primeiros governos. Em tom de grande desilusão, o jornalista Lopes Trovão afirmou: «Essa não é a República dos meus sonhos». A frase cunhou o significado do período para vários literatos e políticos. Desta forma, era ao menos problemático que o governo federal viesse a patrocinar a criação de uma Academia que de início já se mostrava invadida por tantos «inimigos». Embora os defensores argumentassem que o grêmio era essencialmente apolítico e que servia justamente para aproximar figuras de trajetórias tão diferentes, a idéia não vingou e os diretamente interessados tiveram de fundar a Academia por sua própria conta e a sua própria custa (anos mais tarde o governo iria subvencionar algumas de suas atividades).
Esta marca da política iria deixar seqüelas na instituição. Os anos subseqüentes (grosso modo, até 1904) foram marcados pela falta de um alojamento, pela pouca freqüência de seus membros e pelo escasso dinheiro para manter atividades simples como enviar correspondência.
A sobrevivência da Academia nestes anos se deveu, sobretudo, à perseverança de alguns membros, como o presidente Machado de Assis (que exerceu o cargo até a morte, em 1908) e os secretários Joaquim Nabuco, Rodrigo Otávio, Medeiros e Albuquerque, Silva Ramos e Inglês de Souza, ajudados informalmente ainda por membros como José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Taunay e Graça Aranha. Com a exceção de Otávio, Albuquerque e Aranha, todos se identificavam com a «velha guarda» literária e política, sendo alguns deles monarquistas não militantes, e outros republicanos não radicais. Dessa forma, este período inicial foi dominado por um grupo cuja identidade se expressava pela atuação política moderada e discreta e pela defesa do que chamavam de «ideal literário» — maior proeminência social dos escritores e difusão da «alta» cultura.
Indubitavelmente, Machado é a figura proeminente dos 11 primeiros anos da Academia. Além da legitimidade de sua posição no circuito cultural brasileiro, esse escritor soube como poucos articular sua rede de amigos e discípulos (como Mário de Alencar e Magalhães de Azeredo) de forma que as eleições para preencher as vagas dos «imortais» mortos ocorressem da forma mais tranqüila possível — e de maneira que ganhassem os candidatos mais afinados com as escolhas afetivas, literárias ou políticas de seu grupo. É bem verdade que uma ou outra eleição causou certa polêmica, como quando em 1905 o filho do grande escritor romântico José de Alencar, Mário, um iniciante de pouca expressão, foi escolhido numa disputa com o já consagrado Domingos Olímpio, autor do romance Luzia-homem. Mas o caso teve pequena repercussão na imprensa, e a autoridade de Machado de Assis não foi questionada.
A correspondência entre os acadêmicos durante esses anos mostra como as cabalas eram conduzidas, de maneira que as eleições contavam com poucos candidatos (dois ou três) e quase sempre venciam os escolhidos ou por Machado de Assis ou por alguém do seu grupo. Interessante é notar, neste aspecto, como Joaquim Nabuco, amigo íntimo de Machado, era conduzido, muitas vezes sem perceber, a deixar de fazer campanha para seus candidatos pessoais, e até mesmo a votar em nomes diferentes daqueles que, de início, defendia. A mão sutil e hábil de Machado de Assis era uma das que conduziam estas e outras manobras. Nabuco escrevia a Machado levantando candidatos, que desistiam no meio do caminho, acabando por votar em quem Machado claramente ou veladamente sustentava. Já Machado tinha dois procedimentos básicos, registrados na correspondência trocada entre os de sua confiança e nos votos que ficaram arquivados ou foram apurados em reportagens de jornais. Ou ele escrevia sobre a escolha de seus amigos (nunca de si mesmo), ou se mantinha calado. Neste caso, havia fortes especulações em jornais e cartas de outros acadêmicos de que fora ele o mentor de certas candidaturas, ou então de que apoiara candidatos articulados por José Veríssimo, Graça Aranha ou Magalhães de Azeredo.
O falecimento em seqüência de Machado, Lúcio de Mendonça e Nabuco, entre 1908 e 1910, e a renovação da Academia mudaram não só a imagem da instituição, mas a forma de ela fazer suas eleições. Entre 1897 e 1910, tomaram posse de suas cadeiras 14 novos imortais. Ainda que quase todos fossem do agrado da «velha guarda», trouxeram suas próprias idéias sobre como deveria ser a vida acadêmica. A segunda década do século XX testemunha o desaparecimento do grupo machadiano e o surgimento de fissuras na Academia.
Os momentos chaves neste sentido foram as eleições do médico sanitarista Oswaldo Cruz (1911) e do político e diplomata Lauro Müller (1912). As duas candidaturas chocaram uma parte da instituição pela forma pública como foram conduzidas e pela clara intenção de levar a Casa a orbitar em torno da elite política dominante. Cruz, que executara as reformas sanitárias do Rio de Janeiro do começo do século, era o cientista brasileiro mais famoso da época. Já Müller, político fluminense, sucedera o barão do Rio Branco como ministro das Relações Exteriores. Nem um nem outro tinha qualquer obra ensaística, literária, religiosa, histórica ou jurídica publicada, — fato constrangedor para uma Academia «de Letras».
As duas candidaturas foram violentamente combatidas, até mesmo por gente de fora da Academia, que via como uma deturpação do projeto original a entrada de figuras sem mérito literário, apenas por sua importância junto ao poder.
Recuperando uma idéia não desenvolvida plenamente por Joaquim Nabuco anos antes, Afrânio Peixoto defendeu a «teoria dos expoentes». Espelhando-se na Academia Francesa, os expoentes seriam justamente uma parcela da elite mandante que deveria ter uma cota dentro da Academia, pois os estadistas e os grandes nomes da política fariam parte da inteligência nacionais.
O resultado favorável a essa teoria, os rancores advindos dos acalorados debates, bem como a forma aberta e desinibida com que acadêmicos mais jovens, como João do Rio, fizeram a campanha pró-ex-poentes não só inauguraram uma nova era na Academia, como levaram ao primeiro caso de rompimento explícito com a mesma. Em 1913, José Veríssimo, secretário-geral da instituição, se desligou. Em carta cheia de amargura, justificava a medida por condenar o fato de que aquela casa teria passado a ser usada para a vantagem pessoal de alguns e como palco de clientelismo.
Antes dessa ruptura a Academia tinha se deixado levar por conveniências políticas internas, de forma a produzir imortais das letras ligados às gerações mais antigas. Já a entrada de Oswaldo Cruz e Lauro Müller, bem como outros tantos depois deles, foi um aprofundamento, e não uma mudança radical. Da ordem interna, a política passou a ser de ordem externa. Mas a política, qualquer que fosse sua forma, sempre foi uma forma de chegar à imortalidade.
Até meados do século XX era costume usar a expressão «homem de letras» para definir aqueles que trabalhavam ao mesmo tempo como jornalistas, professores catedráticos, escritores de ficção e/ou de temas de ciências humanas. E um «homem de letras» era visto exatamente desta forma: apenas como um homem. Os literatos não estavam imunes aos preconceitos vigentes na sociedade brasileira da época. O que não impediu que o país, por volta de 1880, passasse a ter mais e mais escritoras. Uma delas, em especial, alcançou grande sucesso na virada do século. Escrevendo em jornais e publicando vários romances, Júlia Lopes de Almeida foi tão elogiada que «mereceu» a honra de ter seu nome cogitado para a Academia Brasileira. No entanto, diziam as más línguas que foi para contornar a impossibilidade de sua presença que Filinto de Almeida, um escritor dito «menor», foi escolhido para ocupar a cadeira de fundador de número 3. Detalhe: Filinto era marido de Júlia...
De uma maneira geral, a Academia não expressou a proibição clara de haver membros femininos. O que costumava ocorrer era a postergação do debate quando alguém lembrava a ausência. Entre setembro de 1911 e novembro de 1912, pela primeira vez os acadêmicos debateram acaloradamente (uma ata fala que a sessão só acabou depois de «restabelecida a calma») a presença de mulheres, mesmo que o regimento não impedisse sua entrada. Discutiu-se «a inconveniência das mulheres nas sociedades masculinas» (Ata de 9/9/1911).
Carlos de Laet foi o mais forte defensor do «belo sexo», posicionando-se claramente contra a discriminação, pois se tratava de mais uma das «barreiras caducas [d]o nosso tempo» (Ata de 30/11/1911). Contudo, mesmo os dessa opinião não deixavam de incorrer numa visão preconceituosa. Laet, por exemplo, esperava que o advento de mulheres fosse, entre outras coisas, «útil ao próprio humor dos acadêmicos», insinuando que uma de suas funções seria ornamentar, pela beleza física, as reuniões da instituição. A primeira escritora só foi eleita muito tempo depois (Rachel de Queiroz, em 1977), embora a literatura brasileira já contasse na segunda metade do século XX nomes como Cecília Meireles e Clarice Lispector.
O Estatuto da ABL afirma que para ser escolhido membro é necessário ao candidato ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário. Informalmente prevaleceu a manutenção do equilíbrio na proveniência profissional dos imortais, mantendo-se sempre um percentual de representantes de certas áreas: escritores, jornalistas, diplomatas, clérigos, juristas, médicos, e acadêmicos de ciências humanas. Embora não tenha sido nunca a norma, a escolha de imortais com base no critério das “notabilidades” ocorreu em vários momentos a partir de 1913. Vários imortais, embora jornalistas, juristas ou escritores, se tornaram mais famosos por suas atividades públicas e políticas do que pelo impacto e importância de seus artigos e livros. Alguns podiam ainda ser políticos muito influentes e poderosos, como os presidentes Getúlio Vargas (eleito em 1941) e José Sarney (eleito quando era senador, em 1980), e como o vice-presidente Marco Maciel (eleito quando também era senador, em 2003). Outros podiam ser proprietários de grandes empresas de mídia, como Assis Chateaubriand (do grupo Diários Associados, eleito em 1954) e Roberto Marinho (das Organizações Globo, eleito em 1993). Nenhum destes personagens se notabilizou por seus dotes literários ou por ter escrito livro de impacto, no sentido de ter tido sucesso de crítica ou entre o público leitor. Os críticos destas figuras acusaram a ABL de deixar de lado o perfil do mérito intelectual e artístico para tentar agradar grupos dominantes ou de poderosos, perdendo assim sua independência. Um caso especialmente controvertido foi o da escolha do general Aurélio de Lyra Tavares em 1970, no auge da ditadura militar, o que poderia ser interpretado como aprovação da Academia à repressão política. Figura de proa do regime, fora ministro do Exército em 1968, participando da decretação do Ato Institucional no 5, que fechou por tempo indeterminado o Congresso Nacional, institucionalizou a censura e cassou os direitos políticos de centenas de pessoas, entre outras medidas de exceção. Tavares não era da chamada «linha dura», mas tampouco se opôs a ela.
Saiba mais A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos primeiros anos da República (1897-1924). Alessandra El Far. FGV/ Fapesp, 2000. O presidente Machado de Assis nos papéis e relíquias da Academia Brasileira. Josué Montello. José Olympio, 1986. Machado de Assis e Joaquim Nabuco – Correspondência. Graça Aranha, (org.). Academia Brasileira de Letras, Topbooks, 2003. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. Nicolau Sevcenko. Companhia das Letras, 2003. |
*in BrHistória, de 3 de Junho 2007