1. Os processo de formação de uma língua consolidam-se no tempo, o que implica que a reconstituição do percurso efetuado seja um processo tanto apaixonante quanto complexo. Por exemplo, a mesóclise (colocação de um pronome átono entre o radical e a desinência do verbo, visível em formas como amá-lo-ei), fenómeno pleno de vitalidade na escrita e em registos mais formais do oral, encontra a sua origem em formas perifrásticas verbais características do latim vulgar, como se explica numa das respostas constantes da atualização do Consultório. A sintaxe volta a ser um assunto que dá origem a questões diversas, o que fica patente em duas respostas que tratam os complementos oblíquos do verbo voltar e a identificação de uma oração resultativa em «O que aconteceu para chegares tarde?» Discute-se, ainda, qual será a forma correta de uma parlenda: «hoje é domingo, pé de cachimbo» ou «hoje é domingo, pede cachimbo»? Finalmente, trata-se a questão da pronúncia do nome científico Erlichia canis (doença popularmente conhecida como «febre da carraça»): "erlíquia" ou "erlíchia"?
2. A comida que alimenta o corpo sustenta também o espírito. É o que parece comprovar a obra «Que cousa é chanfana?», que o jornalista e escritor Fernando-António Almeida arquitetou em torno de 9 sonetos dedicados à chafana pelo poeta satírico António Lobo Carvalho, em pleno século XVIII. Uma obra de natureza histórica, ensaística, que passa pelos ambientes literários e pelo mundo da restauração lisboeta e que «com aparente despretensão, marca uma diferença erudita e ao mesmo tempo de grande força sugestiva, quando evoca ambientes da Lisboa antiga, entre poetas devassos e galegos laboriosos. Assim se dá também alimento à curiosidade por um passado citadino, afinal, tão vivo nos nomes das ruas e praças lisboetas», como sintetiza Carlos Rocha, coordenador executivo do Ciberdúvidas, na apresentação que divulga na Montra de Livros.
3. Nos dias que correm, as palavras mais ouvidas e lidas convergem para a situação provocada pela pandemia do coronavírus. COVID-19 é a palavra do momento, ainda não dicionarizada, mas por todos já reconhecida como tal e usada a cada hora. Todavia, a sua significação permanece instável, como é comum nas palavras recém-criadas. Por essa razão, recordamos aqui que COVID-19 é o nome da doença provocada pelo vírus que recebeu a designação de SARS-CoV-2 pelo Comité Internacional para a Taxonomia dos Vírus. Visto que o nome da doença está a sofrer um processo de lexicalização, poderá ser escrito em letra minúscula, usado como nome comum (covid-19), não se justificando o recurso a maiúscula inicial. Os usos dados à palavra estão a provocar uma instabilidade no seu género, pois esta é utilizada tanto para referir a doença («a covid-19») como, indevidamente, o vírus que a provoca («o covid-19»). Para evitar esta indefinição e a falta de rigor que causa, sugerimos que se utilize o termo no género feminino («a covid-19») exclusivamente para designar a doença, tal como definiu a Organização Mundial de Saúde, reservando para o vírus a designação técnica SARS-CoV-2, a expressão «novo coronavírus» ou ainda «2019-nCoV». No âmbito das decisões políticas associadas à pandemia, recordamos que as expressões «estado de alerta» e «estado de emergência» se escrevem com letra minúscula e teletrabalho se escreve com minúscula e sem hífen.
Algumas destas sugestões e ainda outras foram já apresentadas em aberturas anteriores do Ciberdúvidas: aqui, aqui e aqui.
4. Também à volta das palavras da atualidade, o professor universitário e tradutor Marco Neves explica a origem do termo isolamento, esclarecendo que deriva do verbo isolar, que se formou a partir da palavra isola, derivada do termo latino insula. Uma história curiosa para acompanhar os dias de isolamento voluntário que marcam o nosso quotidiano e, já agora, sigamos os conselhos do autor: «Já que temos de ficar uns tempos armados em ilhas, usemos as palavras e as histórias para nos achegarmos uns aos outros. São um pequeno alívio nestes dias do vírus.» (crónica divulgada no blogue Certas Palavras e aqui transcrita, com a devida vénia).
5. É também à volta das palavras que o apontamento da jornalista Anabela Mota Ribeiro se constrói. São as palavras que nos podem estruturar e auxiliar nos tempos que vivemos: empatia, disciplina, obediência e confiança, mas também força e coragem. Esta é uma mensagem feita de palavras que nos auxilia na reinvenção dos nossos dias.
6. Visões apocalíticas do devir do mundo consideram que a pandemia que vivemos pode ser o resultado de uma vingança divina. Tomando o tema sob a ótica do texto bíblico (de que é tradutor), o professor universitário Frederico Lourenço esclarece, no seu mural de Facebook, que na Bíblia as passagens que associam a doença à ira de Deus são residuais, o que invalida a generalização deste conceito. Uma visão esclarecida que denuncia usos abusivos e adulteradores que vingam com alguma facilidade nos tempos atuais.
7. Destacamos, neste ponto final,
– A colaboração da Porto Editora e da Leya, que decidiram abrir gratuitamente as suas plataformas digitais a todos os alunos e professores, como forma de auxiliar a reestruturação do ensino em função da nova realidade de ensino-aprendizagem (notícia);
– A apresentação, pelo jornal Nexo, de um panorama gráfico da obra do escritor brasileiro Guimarães Rosa, que trata aspetos como a avaliação dos leitores, as obras publicadas por idade e por número de páginas, entre outros aspetos (aqui);
– O passatempo, também divulgado pelo jornal Nexo, que convida o leitor a identificar a língua em que 10 músicas são cantadas (aqui).