Entre o ensaio histórico e o comentário literário, este livro do jornalista e escritor Fernando-António Almeida (Condeixa-a-Nova, 1939) centra-se em nove sonetos que o poeta satírico português António Lobo Carvalho (1730-1787) compôs e dedicou a um prato da gastronomia tradicional da Península Ibérica: a chanfana1. É este o nome que se dá a uma especialidade hoje identificada em Portugal com a gastronomia das regiões do norte interior do distrito de Coimbra e do sudoeste de Viseu, com extensões pela Bairrada, sobre o qual se costuma dizer que deve ser confecionado com carne de cabra velha cozinhada em vinho tinto.
Em estilo digressivo, o livro reparte-se por uma introdução, seis secções, um glossário geral, uma cronologia, uma bibliografia criteriosamente estruturada, uma cronologia e o índice das várias gravuras que se inserem nestas páginas. Na introdução, um autor-enunciador dialogante, à maneira garrettiana, dirige-se aos leitores («meus amigos» e «companheiros de viagem») para apresentar a obra como uma viagem no espaço-tempo, desde as origens da chanfana até aos espaços lisboetas em que ela era servida na transição do século XVIII e XIX. Na secção I, dá-se a conhecer a figura de D. José, príncipe do Brasil (1761-1788), e relatam-se as circunstâncias em que este, perguntando «Que cousa é chanfana?», motivou um despique poético de veia satírica. A secção seguinte, começando por ser dedicada às referências à chanfana nas disputas em verso de Bocage (1765-1805), Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), Nicolau Tolentino (1740-1811) e outros coetâneos, passa depois a uma discussão das origens deste prato e da sua naturalização em Lisboa por via da colónia galega residente na cidade. As secções III e IV focam os poemas selecionados, provenientes de Poesias Joviais e Satíricas, publicadas postumamente em 1852, quer transcrevendo os textos, quer esclarecendo as muitas alusões aí existentes aos vários modos de preparar a chanfana (ao que parece, um cozinhado de vísceras de animais). A secção V é a oportunidade de o autor conduzir quem lê ao mundo da restauração lisboeta, como o Malcozinhado, antes do terramoto de 1755, e depois no Campo do Curral e no Isidro, lugares onde a vida boémia e marginal atraía poetas de criativa irreverência. Forma a última secção um conjunto de apêndices, que contêm informação complementar sobre figuras e aspetos abordados ao longo do livro.
Trata-se, portanto, de um volume que, com aparente despretensão, marca uma diferença erudita e ao mesmo tempo de grande força sugestiva, quando evoca ambientes da Lisboa antiga, entre poetas devassos e galegos laboriosos. Assim se dá também alimento à curiosidade por um passado citadino, afinal, tão vivo nos nomes das ruas e praças lisboetas.
1 Atualmente, a palavra chanfana significa frequentemente «estufado de cabra, chibo ou ovelha, feito com vinho e cozinhado geralmente em panela de barro (caçoila), de preferência em forno a lenha» (Dicionário Priberam). No entanto, como o autor da obra aqui apresentada assinala e os dicionários confirmam, o termo tem-se aplicado não raras vezes a um cozinhado pouco elaborado, com recurso a algum tipo de vísceras: «comida malfeita», «fressura guisada», «sarapatel, sarrabulho» (idem, ibidem). A etimologia aceite por Fernando-António Almeida é que se aceita na lexicografia portuguesa, ainda que haja muitos pontos a esclarecer: «[do] espanhol chanfaina, guisado de bofes, do catalão samfaina, guisado de legumes, alteração de samfònia, do latim symphonia, -ae, do grego sumfonía, -as, concordância de sons, acorde musical, harmonia, acordo, orquestra» (idem, ibidem).
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