Sintetizando a pergunta e os textos enviados, pretende-se saber se o verbo chamar, no sentido de «atribuir um nome», «apelidar», «designar» (relativo a pessoas ou a seres personificados), pode ter um complemento regido pela preposição de, complemento esse exigido pela regência do verbo. Exemplificando: é correcta a construção «ele chamou-o de analfabeto»?
Para responder a esta pergunta, talvez seja interessante ver, em primeiro lugar, se o verbo pede complemento directo ou indirecto, de que são exemplo, respectivamente, o pronome pessoal o e o pronome pessoal lhe.
Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ou o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva (10.ª edição, 1949-1959), nesta acepção de «atribuir um nome», «apelidar», o verbo chamar pede dois complementos, um deles preposicionado. Exemplos retirados dessas obras: «Chamou ao rapaz idiota»; «era um desses indivíduos de excepção a quem chamamos homens»; «eu sou aquele oculto e grande cabo / A quem vós outros chamais tormentório».
Outros exemplos:
(1) Ó glória de mandar (...) chamam-te ilustre, chamam-te subida. (Os Lusíadas, IV)
(2) Chamava-lhe [Maria Monforte a Afonso da Maia] o D. Fuas, o Barbatanas. (Os Maias, cap. II).
Como se pode ver, «ao rapaz», «a quem», «te», «lhe» são termos que parecem desempenhar a função de complemento indirecto: ou estão introduzidos pela preposição a ou são constituídos pelo próprio pronome pessoal, forma de complemento indirecto (me, te, lhe, nos, vos, lhes).
Epifânio da Silva Dias, na sua Sintaxe Histórica Portuguesa (1916), esclarece que o verbo chamar, no sentido de «chamar nomes a alguém», se constrói «de ordinário com a pessoa ou cousa por compl. indirecto, e o nome (ainda quando adjectivo) por compl. directo». E apresenta uma frase em que surge a oração «chama-lhe juiz injusto», em que «lhe» seria o complemento indirecto, e «juiz injusto», o complemento directo, sem preposição (como acima os termos «idiota», «homens», «tormentório», «ilustre», «subida», «o D. Fuas, o Barbatanas» ).
Daqui se conclui que o exemplo apresentado deveria ser assim construído: «Ele chamou-lhe analfabeto.»
No entanto, a construção «chamar de», esclarece o ilustre filólogo, era utilizada no português arcaico: «Que te chama de ratinhos (Gil Vicente, vol. II, 435, ap. J. Moreira, Est., 1, 138)».
Por seu lado, Vasco Botelho do Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1952), defende que «não é erróneo, como se pensa, o emprego da preposição em frases como: ‘chama-se a isto Amor de Deus’, ou: ‘chamou de ilustre àquele rei’. Bons autores assim praticam». Porém, o exemplo que dá («Herculano, por exemplo, em O Bobo, pág. 59: ‘chamais ao infante rebelde....’”) abona a construção defendida por Epifânio da Silva Dias: complemento preposicionado = indirecto («ao infante») + complemento sem preposição = directo («rebelde»).
Evanildo Bechara, gramático brasileiro, na Moderna Gramática Portuguesa (2003), refere que «já é muito corrente no Brasil a construção chamar de com obj. dir., contaminada de outras, como acusar, argüir de».
Assim, embora se defenda como preferível a forma «ele chamou-lhe intelectual», não poderá dizer-se que é um erro a construção «chamar de» no sentido de «chamar nomes a alguém», presente na frase «ele foi chamado de intelectual». De referir, ainda, que as ocorrências com a construção «chamar de» normalmente têm o significado de atribuir um epíteto que não é realmente uma característica do indivíduo, como o nome, mas o juízo que alguém faz dele, de que são exemplo as frases «chamei-o de mentiroso» (abonada pelo Dicionário de Verbos Portugueses da Porto Editora, 2005) ou «o homem chamou-me de palerma» e «não gostei nada que ele me tivesse chamado de imbecil» (abonadas pelo Novo Dicionário Lello Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, 1999): não significa que o indivíduo seja realmente mentiroso, palerma ou imbecil, mas, apenas, que alguém assim o apelidou.
[Veja-se, também, a minha resposta de 15/2/2002, Como lhe chamam].