Estávamos a falar de achares e acepipes. E estava uma velha cozinheira goesa a dar o seu veredicto nesta matéria de sua especialidade, dizendo-nos com aquele ar típico de cientista que sabe o que diz e não aceita opinião em contrário, quais os usos e os efeitos da malabárica alquimia de pimentas, cravos e canelas. Pimentas, em sua opinião, havia várias: "doces" — vá a contradição — como as de Caxemira; aromáticas como as de Aldonã, aldeia do norte de Goa; picantes mas mesmo picantes… nenhumas tanto como as putkipari.
Putkipari — Estranho vocábulo concanim, língua materna do goês. Mas a etimologia da palavra é relativamente simples. A malagueta goesa (a tal putkipari) é um fruto redondo, à primeira vista uma baga, e um português aventureiro (mas ainda um tanto estranho às «coisas da Índia») teria metido uma na boca para a provar. Ardeu-lhe a boca de certeza… e o homem praguejou: «P… que a pariu».
O "nativo" que presenciou a cena espalhou logo a notícia: que na língua do branco malagueta era putkipari. Os portugueses foram-se embora, a malagueta ficou… ou melhor ficou a putkipari. Passemos em revista alguns vocábulos que, "ficaram" e outros que "foram". Ficaram na Índia – e de um modo geral no Oriente – e foram do Oriente para Portugal — e ingressaram no vocabulário das suas populações um sem número de palavras e expressões. Natal é palavra que ingressou no hindustani. Pagar significa «vencimento»/«ordenado» em hindustani, também significa «peita»/«suborno». Purór, do português por hora significa «provisoriamente» em concanim. Sapatu é o que ficou do sapato português em terras da Taprobana. Fidalg é a expressão contemporânea em concanim para indivíduo que seja ufano, e, na mesma ordem de ideias, fidalgui é «vã gabarolice». E barberi em sentido figurado, é, como aliás o é em português: «médico ou cirurgião pouco competente», pedrer é «pedreiro», sai é «saia» e corpet é «sutiã»…
Poucos haverá que saibam que o «pau brasil» não veio do Brasil. Que Brasil foi assim baptizado porque era rico em cesalpináceas conhecidas em português como brasil (Cesalpina sappan).
Karpura em sânscrito transformou-se em alconfer em árabe e daí cânfora… Catual e quetal, que em português seiscentista queria dizer «comandante de forte», é palavra derivada do persa kotual, por seu turno derivada de kota, «fortaleza» em sânscrito. Patola, palavra portuguesa significando «tecido de seda», veio de pattuda, palavra da língua malayalem (do Malabar) e em Goa, em português goano, patola significa «melancia».
Da lida com os árabes vieram: alcaide do árabe al-kaid, e com a vinda dos portugueses à Índia, a palavra alcaide foi assimilada por línguas indianas, tanto de origem sânscrita como as de origem familiana [sic]. Almirante e almisear [sic], almoxarife e alvará e também armário são igualmente palavras de origem árabe. Hoje, almyrah em inglês indianizado, almar em concanim, almari em hindustani são o tesouro filológico legado por uma era em que os armários, enormes e pesados, eram usados para guardar rubis de Golconda e pérolas de Pegu. E cartas de amor vindas do Ultramar ou da Metrópole – termos estes que quase já perdemos o seu primitivo significado.
Era uma era de coisa e feitos mirabolantes, palavra esta que no seu sentido contemporâneo significa «que dá muito na vista; espalhafatoso». Tratava-se, originalmente, de um fruto medicinal de Malabar, o mirabolano, que pelos modos muito dava na vista.
Em Damão, os trocadilhos e atropelos são muito mais pitorescos do que em Goa. «Regar coração» é encher o peito de alegria. Comboio é carret de fogo. E namorado que queira saber se há perigo à vista, pergunta à surrelfa antes de transpor o limiar da namorada: «Tem caz pai?» Ou por outra… está ele a portas dentro?…
Artigo da autoria do escritor Mário Cabral e Sá, publicado originalmente na revista Nam Van, em janeiro de 1986.